sábado, 10 de setembro de 2011

Por amor também se mata


 James Stewart ( a esquerda): um médico que se esconde atrás da máscara de palhaço



Um dos primeiros personagens a me marcar de forma indelével, até hoje, foi o palhaço vivido por James Stewart em O Maior Espetáculo da Terra, de Cecil B. de Mille. Quem viu o filme, com certeza, há de se lembrar que trata-se de um médico de tal forma apaixonado pela mulher que diante de um diagnóstico de doença incurável decide apressar sua agonia. Não deixa de ser instigante que, para fugir da polícia, ele se esconda atrás de uma máscara de palhaço no Barnum, Bailey, Ringling Bros, o maior circo de todos os tempos.

Eu era pouco mais que um pentelho de seis anos quando vi o filme no velho cine Santo Antônio. E algum tempo depois acompanhei o velho Nunzio numa récita, uma das minhas primeiras, de I Pagliacci, a ópera predileta dele, numa matine no Teatro Municipal. Impressionante a história contada por Ruggero Leoncavallo, agora de um circo mambembe pelo interior da Sicilia e um triângulo amoroso, que envolve como Arlequim, Pierrot e Colombina, três atores num turbilhão de paixão. O que mais me impressionou, sem dúvida, foi a cena final. A chamada cena dentro da cena, quando a desgraça se desenha no picadeiro, o público delira com o realismo interpretativo, mas nós na plateia de verdade sabemos que se trata mesmo da vida real. A frase final é tremenda: La commedia é finita!

Claro, tem a Carmem de Bizet. O Macbeth de Sheakespeare. O Moulin Rouge de Huston: “Nós matamos aquilo que nós mais amamos”, dito por ninguém menos que o próprio Toulouse Lautrec.

Não muito distante da cena teatral ou operística, encontrei na vida real personagens de verdade que conviveram com esta difícil contradição: o amor e a morte. Ou seria a morte levada pelo amor. Ou ainda o amor que leva a morte.

Quando comecei no Estadão, certa vez um dos diretores da empresa, um tipo bem afeiçoado, simpático mesmo, acabou virando notícia. Havia sido vítima junto com a esposa de um sequestro e, na tentativa de fuga, em Riacho Grande, na borda da Billings, conseguira escapar da sanha dos bandidos, a despeito de sua amada esposa acabar por perecer vítima dos assaltantes. Ficamos todos vivamente marcados pela sua história. Mas, dias depois a Polícia descobriu que não era nada disso. O tipo havia executado a esposa a sangue frio, se autoflagelado com um tiro no joelho e outro na mão. Por que? Jamais soube. Falaram em traição dele, traição dela. Sei lá. A verdade é que duas vidas se perderam.

Já repórter do antigo Diário Popular certa vez fui entrevistar uma mulher acusada de ser uma serial killer. Contra ela pesava a acusação de mais de uma dezena de assassinatos. Era uma prostituta bem bonita, vistosa, com longos cabelos tingidos para parecerem loiros. Lábios protuberantes, olhos castanhos profundos, pele alva. Ela dava expediente em uma das muitas esquinas da Zona Sul de São Paulo e devia ter uma clientela de respeito, pelo menos a julgar pelas vítimas. A Polícia demorou em chegar até ela. Principalmente porque não havia sinais de latrocínio. As vítimas eram encontradas em seus veículos, em lugares ermos, muito distantes um dos outros, apenas com a jugular cortada.

Quando falei com ela no Presídio Feminino do Hipódromo se me apresentou uma menina. Vestida em um daqueles horríveis macacões, sem qualquer sinal de glamour, ela me contou que não suportava a ideia de ser abandonada após o ato sexual e de que sempre se sentia apaixonada por alguns de seus clientes. Nesta entrevista vivi um dos episódios mais impressionantes da minha carreira. A conversa avançava inquietante quando ela decidiu assegurar que eu tivesse dela a visão da mulher irresistível e atraente que era.

Convenhamos que naquele ambiente, vestida daquela forma, sem qualquer resquício de feminilidade, uma mulher que havia matado 12 com uma singela gilete, seria difícil imagina-la uma femme-fatale. Pois a menina escondeu o rosto no cotovelo e quando o revelou me provocou arrepios tremendos. Transformara-se em um objeto de desejo capaz de provocar desejos incontroláveis.

Fiquei muito perturbado no final da entrevista e ainda me lembro de que aquele personagem que se chamava Ana ficou muito tempo na minha cabeça. Mais perturbado fiquei ainda quando soube que ela havia matado mais três companheiras de cela, até que finalmente alguém decidiu tirar a sua vida.


Angela Diniz, a pantera: assassinada em Búzios por um amante enlouquecido 



Outra história marcante dos meus tempos de repórter foi a Ângela Diniz, a pantera mineira, e Doca Street. O país inteiro ficou convulsionado. Dois julgamentos, dois juris, um absolveu e outro condenou. Acompanhei os dois e tive convicções diferentes.

Para quem não se recorda ou não conhece a história, Ângela era uma socialite mineira que se envolveu com um pseudo playboy, Doca, em Búzios, no Litoral Norte do Rio. Durante algum tempo, a pantera usou de todos os seus recursos para seduzir o galã. Até que conseguiu. Quando o rapaz estava completamente apaixonado, dependente, subjugado, passou a humilha-lo, expondo-o a bacanais e outros requintes de sordidez. Ao final, ele descarregou seis balas de um 38 no corpo franzino de Ângela. Foi condenado e cumpriu pena.

Encontrei-o como um vendedor de carros usados na Boca de São Paulo. Não resisti a uma pergunta: “Cara porque você não caiu fora? Não viu a armadilha que estava”.

- Vi sim e tinha consciência do que estava acontecendo. Mas, eu amava Angela!

Durma-se com um barulho destes.

O caso mais abjeto e revoltante, como não poderia deixar de ser, testemunhei aqui em Brasília. E como era de se esperar, todos os envolvimentos ficaram longe de ser esclarecidos por uma razão muito simples: os fatos envolviam não só paixão como poder e dinheiro. Um coquetel para lá de explosivo.

José Carlos, de camisa vermelha: picareta cruel
José Carlos Alves dos Santos era um simples consultor do Senado que trabalhava na Comissão de Orçamento. Já se sabia de seu envolvimento com uma quadrilha de parlamentares que manipulavam seus interesses. Também se sabia de seu envolvimento com uma secretária de uma das grandes empreiteiras do país. Havia aquela história de dinheiro sob o colchão, tráfico de drogas, a garçonniere que ele mantinha para eventuais encontros não só com a amante, mas com o que aparecesse na sua frente. Nada disso foi apurado a exaustão e não me lembro da prisão nem mesmo do parlamentar que se safou alegando que havia ganhado na loteria umas dez vezes. Todo o frisson ficou concentrado no desaparecimento de sua esposa, ela também funcionária pública, uma mulher belíssima, a julgar pelas fotografias, que 
simplesmente havia evaporado.

José Carlos era hábil e sedutor. Não só convencera os repórteres, mais precisamente as repórteres de que era apenas um joguete nas mãos dos poderosos, como sugerira que a esposa o havia abandonado e teria fugido com um amante. O sempre atuante senador Eduardo Suplicy chegou mesmo a viajar a Nova York, onde um estranho informante garantira que ela estava escondida.
Um estranho personagem desta história, o detetive particular Lobo, especialista em investigações pessoais, entrara na história porque José Carlos suspeitava que sua amante, a tal secretaria da empreiteira o traia, ou era falsa em relação aos seus sentimentos, o que parecia bastante lógico, e havia contratado o investigador para afastar suas suspeitas.

Por alguma razão Lobo saiu da história ou do foco dos jornalistas e acabou preso na Papuda, suspeito de um outro crime que não tinha nada a ver com nada.

Fui entrevista-lo numa manhã. Ele se comportou maravilhosamente bem. Conversamos muito sobre o poder de sedução de José Carlos, os envolvimentos, a certeza que ele tinha que a amante era plantada mesmo pela empreiteira, que o irmão dela, piloto de aviação comercial, estava mesmo envolvido em narcotráfico. Até que a conversa enveredou pela personalidade de seu contratador, o próprio José Carlos.

- Nunca vi um homem tão mau.

- Como assim?

- Fui contratado para enterrar a mulher dele. Ele levou-a a um restaurante para jantar, aparentemente tentou matá-la e me entregou o corpo envolto em uma lona para enterrá-la. Quando eu já estava despejando a terra para cobri-la na cova, reparei que ela ainda respirava. Fui avisar o cara. Ele ficou muito puto. Pegou uma picareta e não teve dúvidas, abriu a cabeça dela.

Alguns dias depois, Lobo levou a polícia até o local onde enterrara o corpo da mulher de José Carlos. Sua cabeça estava rachada pelo golpe da picareta.
José Carlos foi julgado, condenado e cumpriu pena. Perguntei a ele:

- Você não se deu conta do que fazia com a mãe de seus filhos?

- Eu a amava, profundamente, não suportava a ideia de que ela visse no que me transformei.

Outra história interessante me foi contada pelo meu amigo e advogado Duda, lá de Recife.

Foi numa daquelas madrugadas quando editávamos o programa político da campanha de Carlos Wilson para o Senado. Duda contou que um colega seu de nome Paulo era bem casado, advogado notável, com a vida acertada. Casado com uma mulher maravilhosa, pai de três filhos. Acabou seduzido por Cristina, um destes tipos fatais, irresistíveis, casada com um policial, mãe de duas filhas.
Cristina claramente queria se aproximar de Paulo para ascender na carreira que desempenhava no fórum. E foi o que aconteceu. Durante oito anos, os dois mantiveram uma vida paralela. Só os amigos mais íntimos sabiam das aventuras que perpetraram pelas escadas do fórum de Recife e por todo o circuito de motéis da cidade.

Claro que a paixão de Cristina por Paulo se arrefeceu. E ela descobriu que seu poder de sedução não se aplicava apenas a um amante.

Paulo foi ferido no seu orgulho e não sabia o que fazer com a paixão que nutria de forma crescente por Cristina. Passou a coletar fotos e situações que indicavam a vida paralela dos dois. Não satisfeito passou a segui-la e a documentar os pequenos flertes e, às vezes, as aventuras que ela se envolvia com juízes, promotores e altos funcionários da Justiça.

Um belo dia, Cristina o chamou para almoçar na Casa da Odila. Disse para ele em meio a garfadas de uma vaca atolada que queria acabar o relacionamento com ele. Que não sentia mais nada por ele, que não fosse respeito e admiração por tudo o que ele havia feito por ela. Que pretendia investir em seu casamento, etc....

Paulo ficou possesso. Estava preparado para o desenlace, mas não se conformava com o cinismo, o ar de moça ingênua, como se ele fosse um tonto que não sabia o que estava se jogando. Foi muito claro. Quase meridiano:

- Eu vou te destruir. A ti e a carreira que você criou. Vou destruir o seu marido, os seus amantes, vou montar um escândalo de tal proporções, que você será discriminada na sociedade, vai perder o seu emprego e ainda vai ficar sozinha.

Cristina em um primeiro momento não acreditava em Paulo. Achava que tudo sempre se resolveria com um café, uma conversa, uma piscadela.

Paulo passou a jogar pesado. Estava magoado, ferido mesmo.

Finalmente Cristina percebeu que havia se envolvido em uma teia de aranha da qual não havia como sair. Até que numa noite, num café em um shopping em Boa Viagem abriu o jogo:

- Paulo, muito bem, o que eu posso fazer? O que nós podemos fazer para sair desta situação.

Paulo sabia bem o que queria:

- Você vai se separar do seu marido, dos seus filhos, e eu vou fazer o mesmo. Vamos mudar de cidade e você vai viver comigo pelo resto da vida do jeito que eu quiser.

Cinco anos depois, a Polícia encontrou os corpos já putrefatos de Paulo e Cristina em um pequeno sobrado na cidade de Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata. Os dois morreram envenenados.

Cristina deixou uma carta, quase um livro, em que relatou os cinco anos em que viveu isolada com Paulo. Ele passou o tempo todo a torturando psicologicamente. Praticamente tirou-a de circulação e mantinha-a confinada em casa. Às vezes avisava que iam sair e pedia que ela se arrumasse toda, apenas para ter o gosto de despi-la quando chegava a casa.

Outras vezes presenteava Cristina com biquínis extremamente provocantes e a levava ao clube, onde provocava tremendo frisson, e depois a confinava novamente em casa.

Neste tempo, Paulo usou e abusou de Cristina. Não lhe permitiu nada que não fosse servir a ele sexualmente.

Até que Cristina começou a envelhecer, começaram a aparecer algumas rugas, o cabelo liso e castanho começou a mostrar mechas brancas. As nádegas empinadas começaram a cair. Ela engordou. Os olhos azuis perderam o brilho. E Paulo deixou de ser tão frequente. Passou a chegar tarde a casa e a se divertir no meretrício local.

Numa manhã, Cristina pediu um pouco de cianureto do soldador que arrumava o portâo da vizinha. No dia seguinte diluiu-o no café. Paulo morreu instantaneamente com a xícara ainda na boca. Ele entornou o resto, goela abaixo, morreu em seguida. Os corpos dos dois só foram encontrados no dia seguinte.

“Eu tolerei tudo. Submeti-me a ele, aos seus caprichos e as suas taras, porque o amava de paixão. E só descobri isso quando viemos para cá. Mas, não podia suportar a indiferença. Se ele não fosse só meu, não seria de mais ninguém” – escreveu Cristina.

Se essa história é verdade ou não, pouco importa, mas o dr. Eduardo, o Duda, contava ela com vigor e detalhes impressionantes que nos animavam naquelas madrugadas tensas da campanha.


Charlotte Rampling e Dick Bogart: Cavani vai fundo na dependência da paixão 


Esta história de Paulo e Cristina sempre me leva ao clássico de Liana Cavani, O Porteiro da Noite, um dos melhores filmes que eu já vi. Liana é destas diretoras que não tem meio termo, ou se ama ou se odeia. Eu amo.

O Porteiro da Noite conta a história da mulher de um notável maestro que vai a Praga reger uma ópera de Mozart. No hotel onde o casal está hospedado, ela se sente perturbada quando descobre que o porteiro da noite era um ex-soldado alemão, que a seviciava quando era menina em um campo de concentração para judeus.

Em um primeiro momento, a mulher experimenta uma sensação de horror. Mas, quando se encontra com o porteiro e descobre nos seus olhos a chama do desejo e das lembranças, sente-se desta vez imbuída do poder de sedução e se entrega para ele, exigindo que ele pratique com elas as mesmas sevicias dos tempos do horror.  O final.... Bem assistam o filme.

Dizer que a mente humana tem escaninhos indecifráveis pode soar como livro de auto-ajuda e prejudicar o meu texto, ou transformar esta reflexão em uma “tolice” como diz uma amiga minha muito querida, leitora voraz deste blog.  Mas, nesta semana eu disse a minha analista, a doce Lúcia Helena, que eu me sentia mau. Que havia ligado o modo foda-se e que não iria mais perder tempo tentando entender a alma humana, ou melhor, o comportamento daqueles que me rodeiam.  Mas, neste sábado trombei com a imagem do palhaço vivido pelo James Stewart no filme do Cecil B. de Mille e me pus a refletir.

A minha geração consagrou o amor livre de Sally Bowles, de Cabaret, de Bob Fosse. Na verdade lutou pelo fim da posse, da propriedade humana, do conceito careta de é meu, é seu.  Ainda me lembro das noites frias do Blue Riviera, quando a gente sabia como entrava e não sabia com quem saia. E tudo acabava numa xícara de café quente, pela manhã, sem cianureto, é claro.

A vida nos surpreende, para melhor e para pior. Iniciei com a Lúcia uma viagem pela culpa e pelo medo. Estou ávido para retomar o assunto. Para terminar, outro dia encontrei por acaso uma amiga queridíssima, colega de quatro costados na redação, que me contou estar vivendo um tórrido caso de amor com um ex-piloto moçambicano, anti-Samora.  Confessou-me que jamais em tempo algum perguntou a ele porque lutou contra a revolução em Moçambique. Mas, esta criatura, que, aliás, merece toda a felicidade do mundo, certa vez largou tudo. Um casamento com um alto funcionário do Banco do Brasil, emprego uber bem remunerado, conforto e comodidade e foi viver no sertão da Bahia com um motorista de caminhão. Aliás, uma motorista de caminhão.

Claro. Não deu certo e ela voltou para os escombros que havia deixado. Reconstruiu tudo e me pareceu feliz. Que bom!

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