domingo, 25 de setembro de 2011

Quanto vale uma vida?


A agitada noite de Cuiabá: neste cenário Toni foi assassinado pela intolerância



Muita gente acredita mesmo que os brasileiros são meigos, tolerantes e pacíficos. Esta é uma das maiores falácias que se repete desde que Cabral enrolou por alguns dias, uns poucos pataxós, nas praias de Porto Seguro. No ano passado, dois estudantes baianos, beneficiados pela mobilidade do Enem se apresentaram em um dos campus da Unipampa, no Interior do Rio Grande do Sul.

Negros, bonitos, com cabelos rastafáris, violão disponível, aquela fala mansa e malemolente que imortalizou Dorival Caymmi, os dois acreditaram nesta abobrinha. Acabaram navalhados em um hospital por um grupo de agroboys gaúchos inconformados com a “invasão”.

Na semana passada, foi um menino de nome Toni, da Guiné Bissau, que cumpria uma bolsa de estudos na Universidade Federal do Mato Grosso, que foi surrado até a morte por agroboys cuiabanos. O pobre rapaz incomodou os valentes garanhões locais porque estava mendigando na porta de um bar.

Toni, coitado, caiu no conto das drogas. Era um bom rapaz, aplicado e diligente, até que foi vitimado pelo crack. Deixou de fazer seus deveres, deixou de estudar, recusou a ajuda psicológica da universidade e acabou errante pelas ruas. Nada disso justifica, entretanto, a sanha assassina dos playboys.

Claro, quem não se lembra do índio incendiado com álcool enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasília, e tantas outras histórias de intolerância, discriminação racial e social. Eu me lembro de uma bastante revoltante que ocorreu no centro de São Paulo, no final dos anos 70.

Um menino de rua, com pouco mais de 10 anos, cometeu a desfaçatez  de tomar uma correntinha de ouro ordinária de uma gostosona, ali muito perto do Largo de São Francisco. Foi um salseiro danado. O garoto saiu correndo pela rua José Bonifácio e um grupo de rapazes muito bem nutridos achou-se tomado pela sanha da justiça e decidiu dar-lhe perseguição.

Claro que se fosse uma velhinha a vítima do assalto, isso não aconteceria. Mas, como era uma gostosona, que ridiculamente se pôs a gritar como se fora estuprada, a valentia brotou nos bem alimentados jovens de paletó e gravata que perambulavam por ali.

O menino foi alcançado, foi surrado, e abandonado no meio-fio sangrando. Morreu. A correntinha de ouro foi devolvida a gostosona. À família do pobre menino foi encaminhado o corpo frágil e sem vida do filho desgraçado, cujo valor sequer se equipararia a uma corrente ordinária de ouro.

Histórias como essas ilustram bem a índole de uma classe média metida, sem crítica, que não tem a menor ideia do mundo em que vive. Mas, não posso deixar de contar uma bastante relevante que mostra o quanto este espírito justiceiro às vezes pode se voltar contra seus empedernidos defensores.

Centro velho de São Paulo: uma vida por uma corrente de ouro


Foi o caso de um reconhecido médico que se animava com justiceiros do tipo Rambo, Cobra e que tais. A paixão era tal que ele chegou a comprar uma Magnum 44, automática, que conservava como joia da coroa, devidamente lustrosa para mostrar com gaudio para as visitas.

Uma noite o bom doutor ouviu barulhos estranhos em sua garagem. Era a oportunidade enfim de viver de verdade, quem sabe, o personagem de Clint Eastwood, o Dirty Harry. Desceu as escadas pé ante pé. Não queria assustar a presa. Enfim, rendeu o poderoso meliante, um menino de 13 anos, que tentava roubar-lhe os faróis de milha do Maverick super equipado.

O doutor cumpriu direitinho o figurino que imaginava. Colocou o menino deitado de bruços no chão. Imobilizou-o pisando com as pantufas sobre suas costas. Apontou a pistola brilhante para o alto, enquanto com o telefone chamava a Polícia.

O orgulho do doutor explicando como havia rendido o menino com sua Magnum impressionou até os policiais, que levaram o poderoso meliante sob algumas bofetadas, mesmo sabendo que haveriam de liberá-lo na delegacia. E, talvez por causa disso, a reprimenda foi mais violenta.

O bom doutor vangloriou-se a semana toda. Com ele seria assim. Se a Polícia não dá conta destes marginais, ele dava. E ainda que ele pudesse comprar uma dezena de faróis de milha, não toleraria a petulância desta gente.

Numa noite, entretanto, o telefone tocou chamando o velho doutor para uma emergência no hospital. Quando tirava o carro da garagem percebeu que estava cercado. Antes que se desse conta do que estava acontecendo recebeu um disparo. O autor ainda teve o cuidado de quebrar os dois faróis de milha.

O doutor não morreu. Ficou entre a vida e a morte no hospital durante quase um mês. 

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