sábado, 11 de fevereiro de 2012

1978 - Covas, Lula e o que mais viria

Lula clicado pela lente do meu irmão João Bittar: reunião que decidiu pela criação do PT






Em maio de 1978, finalmente, eu conseguia voltar a São Paulo depois de três anos peregrinando o mais discretamente possível pelo Sul do país. Estava confuso e olhava com bastante apreensão para o futuro. As forças progressistas pareciam concentradas apenas na CNBB, de d.Helder Câmara e dos cardeais Lorscheider, e a OAB, de Raymundo Faoro. Os políticos dividiam-se entre os autênticos e moderados. Mas, era uma grande confusão. Havia autênticos moderados como Franco Montoro e moderados autênticos como Teotônio Villela.

Ulysses Guimarães era uma unanimidade. Mas, havia Tancredo Neves, que também parecia uma unanimidade. Um propunha a trincheira de resistência, outro propunha a conciliação. Os grupos organizados da esquerda clandestina estavam praticamente dizimados. Sobrava apenas o partidão, que parecia libertador no discurso, mas era autoritário no dia-a-dia das redações, curriolista e incompetente. O PC do B dizia que todos deveriam usar calça de tergal e sandália de dedo, mas ninguém prestava atenção a este tipo de bobagem.

O regime militar seguia fielmente e a grande custo o script escrito pelo general Golbery de transitar segura e lentamente. O general Geisel, do pacote de abril, passava o bastão de comando para o general Figueiredo, aquele que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro do povo. Uma estranha força política conservadora se organizava em São Paulo para conturbar o ambiente: Paulo Maluf. Ele conseguira a proeza de amalgamar todos os oportunistas ( e oportunista não tem ideologia) do Estado, confrontara o Planalto, e conseguiu a proeza de se eleger governador de São Paulo, pela via indireta.

Neste período conheci dois personagens que iriam me explicar um pouco o que acontecia. Um era um deputado cassado em 68, que dispendia pelo menos uma tarde por semana, em uma sala de uma empresa de engenharia no Morro dos Ingleses e tinha a manha de me explicar que o jogo jogado era outro.  Compartilhávamos um bule de café e um maço de Hollywood e ele, com uma paciência descomunal, abria o baralho político sobre a mesa e me mostrava a face real de cada carta. Antecipava cada jogada com maestria. O outro era um operário, sem nenhuma formação, recém conduzido à liderança dos metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Homem de pouca formação e experiência, mas capaz de sintetizar e definir com poucas palavras o que outros necessitavam de páginas e páginas de explicações. Mário Covas e Luís Inácio da Silva naquele segundo semestre de 1978 eram não só minhas fontes, mas uma cachoeira imensa de informações que encontravam resguardo na minha alma perturbada.

Lula e Covas: relação de respeito. Ao fundo, Alckmincom cara de picolé de chuchu 




“Maluf vai arregimentar todas as forças do atraso: os órfãos da ditadura, os fisiológicos e os oportunistas. Será a alternativa de negociação civil, confiável para o regime militar” – Mário Covas.

“O trabalhador brasileiro não quer saber de ideologias ou de composições políticas. Quer saber de ter feijão na mesa de sua família” – Luís Inácio da Silva, o Lula.

Covas não confiava no espectro ideológico da esquerda assumida. Achava Montoro um oportunista. Tinha horror a José Serra, mas se encantava com Almino Affonso e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso. Tinha um apreço descomunal por Ulysses Guimarães, a quem considerava o grande líder da resistência.

Lula parecia não morrer de amores por ninguém, ainda que arrastasse uma asa por Fernando Henrique e por Teotônio Villela. Insistia em um pragmatismo exacerbado. Para ele, só a classe trabalhadora poderia conduzir seus próprios destinos. Ainda me lembro da sua definição de luta de classes: “Há os que trabalham e vivem disso. E há os que vivem do trabalho dos outros”.

O líder sindical que se forjava com base em um fundamento tão simples, em 1979, iria confrontar para valer não só o regime militar, como a elite econômica paulista. Os de Nigris, os Villares, os Morais, os Penteados e outros ilustres sobrenomes que haviam se fartado por décadas da proteção de um estado autoritário e enchido as burras, viam agora um retirante nordestino liderar uma greve de confronto, que paralisava o parque industrial do ABC, com um único argumento: “Feijão na mesa do trabalhador”.

Covas se divertia com isso. Seu último mandato de deputado lhe havia sido conferido pelos estivadores e pelos metalúrgicos de Santos e ele falava com propriedade: “Os comunistas vão à loucura. Não pelo discurso do Lula, nem pela sua notável capacidade de mobilização. Mas, pelo confronto com os mecenas que na essência financiam a sua clandestinidade”, dizia.

Outra profética de Covas: “Os políticos também. Lula mudou o jogo. Trocou os cacifes. Trouxe de volta para o movimento sindical o foco das transformações. Eles vão tentar tutela-lo. Não vão conseguir e terão que combatê-lo”.

Com a anistia e a volta dos exilados, o cenário ficou bastante tumultuado. Brizola voltou querendo seu espaço. Não achou. Prestes mesmo pressionado viu a novidade que emergia em São Bernardo, o que levou os comunistas à loucura. Arraes também. Neste pastel, Lula preferiu criar um partido político, justamente por não confiar nas outras lideranças. Não há como culpa-lo.

Covas não acreditou no PT. Preferiu ficar com os sociais democratas, primeiro no PMDB e depois do PSDB. Brizola e seu voluntarismo seguiu e segue errante. Arraes criou o PSB. Prestes foi destronado pelo centralismo democrático comunista e viu seu partido de tanta história, virar linha auxiliar burguesa.

Depois de mais de 20 anos, o PT foi para o poder. Pagou e paga o pedágio de ter se institucionalizado. De um jeito ou de outro, Lula cumpriu a mesma promessa que fez quando era dirigente sindical. Tirou mais de 36 milhões de brasileiros da faixa da miséria e pôs feijão na sua mesa.

Covas deve estar de bruços no túmulo. Jamais poderia imaginar que um partido nascido da desconfiança de algumas lideranças sindicais poderia assumir as transformações que o Brasil tanto necessitava. E que o PSDB, que ele ajudou a criar, iria se alinhar com as forças mais reacionárias da sociedade.


 Adversário companheiro
Luiz Inácio Lula da Silva
Mário Covas foi um adversário leal. Com ele, podíamos sempre conversar abertamente. Esse tipo de político faz muito bem ao Brasil, ao contrário de outros que não têm ética nem cumprem compromissos.
Mesmo quando estávamos em pólos opostos, ele contribuía com grandes idéias para o debate. Dava prazer fazer política com Covas. A verdade é que ele deixa uma grande lacuna ética na política brasileira.
Covas tinha fama de mal-humorado, mas lutava e era honesto naquilo que falava. Acredito que o Brasil tenha perdido um exemplo de ética, de dignidade e de moral. Perdeu o Brasil, perdeu o PSDB e, acima de tudo, perdeu o povo brasileiro.
Isso não significa deixar de lado todas as nossas diferenças políticas e partidárias. Mas é hora de fazer o reconhecimento devido a uma pessoa por quem eu nutria um profundo respeito e admiração. Isso porque Covas tinha caráter e tinha palavra.
Na Assembléia Nacional Constituinte, quando fomos colegas, os conservadores, além de atacar a esquerda, tinham o objetivo de neutralizar e diminuir o peso de Mário Covas, que era então o principal negociador do PMDB e agia de forma honrada, cumprindo à risca o que acordava conosco.
Por mais que você pudesse discordar de Covas, você podia confiar na sua palavra. Tinha a certeza de que ele cumpriria os acordos e sabia também que ele poderia dizer não, mesmo quando seria mais fácil dizer sim.
Além disso tudo, ele sempre teve comigo um comportamento muito ético e decente, numa história que vem desde a solidariedade nas greves de 1979 e 1980, passando pela própria Constituinte, quando atuou com muita dignidade, e culminando no segundo turno das eleições de 1989, quando foi para o palanque comigo em São Paulo e no Rio de Janeiro, além do recente apoio à candidatura de Marta Suplicy na última eleição para a Prefeitura de São Paulo.
Em termos conjunturais, a morte do governador Mário Covas pode complicar ainda mais a relação entre a oposição e o governo federal. Acredito que, agora, fique mais difícil esse diálogo.
Covas tinha uma relação profunda com o PT, apesar das divergências. Esse era um dos fatores que facilitavam o entendimento entre nós.
É preciso dizer também que, dentro do PSDB, inclusive na sua alta cúpula, muita gente não gostava de ovas, muita gente o considerava muito duro. É bom lembrar que, não fosse por causa dele, certos tucanos teriam embarcado sem pestanejar na canoa furada do governo de Fernando Collor de Melo.
Como se sabe, entre os possíveis aderentes estava o presidente Fernando Henrique Cardoso e o atual governador do Ceará, Tasso Jereissati. Esse é, sem dúvida, mais um exemplo de que, além de visão política, ele tinha ética de verdade.
Luiz Inácio Lula da Silva, 54, é presidente de honra do PT (Partido dos Trabalhadores) e conselheiro do Instituto Cidadania. Foi presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (1975-81), deputado federal pelo PT-SP (1987-91) e presidente nacional do partido (1980-89, 1990-94 e 1995).
Texto publicado no jornal da Folha de S.Paulo, 7 de março de 2001 – pág. A-3

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