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Fernando Haddad - Universidade Nacional de Cordoba- dezembro de 2014 |
Palestra-aula
do professor Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, por ocasião da concessão
do título de doutor honoris causa da Universidade Nacional de Córdoba –
Argentina, dezembro de 2014.
Eu
gostaria antes de mais nada de saudar o magnífico reitor da Universidade
Nacional de Córdoba, Dr. Francisco Tabarite, cumprimentar a senhora
vice-governadora da província de Córdoba, Alicia Pregno, o senhor intendente da
cidade de Córdoba, o prefeito Ramón Javier Mestre, a senhora
vice-reitora, a Dra. Silvia Barei, o cônsul geral da República Federativa do
Brasil, embaixador Carmelito de Melo, cumprimentar os membros da comunidade
acadêmica da Universidade Nacional de Córdoba, os estudantes, os professores,
agradecer a presença da comitiva brasileira que me acompanha e dizer que eu me
sinto extremamente honrado de estar neste momento em sua presença, senhor
reitor, recebendo este distinto título de doutor honoris causa.
Quero
dizer que é o primeiro título que recebo fora do meu país e não poderia para
mim ser mais honroso receber das vossas mãos uma homenagem que me toca
profundamente o coração. Em primeiro lugar pela tradição da Universidade
Nacional de Córdoba, primeira universidade argentina, criada pelo menos 300
anos antes da primeira universidade brasileira. Em segundo lugar porque eu me
sinto muito ligado ao povo da Argentina, às suas tradições, às suas lutas, ao
seu sofrimento, ao que há de comum aos nossos povos, ao que há de diferente e
complementar e ao desejo de união que vimos celebrando nas últimas décadas,
sobretudo após ao período de redemocratização dos nossos países, período em que
novas lideranças surgiram, novas agendas políticas surgiram no nosso continente
e uma transformação social vem acompanhando a consciência política dos nossos
povos.
Vejo
com muita esperança o que o continente nos reserva. Penso que a América Latina
vem se transformando mais radicalmente nos últimos anos em busca de justiça
social e de reparação histórica. E no que diz respeito ao Brasil essa reparação
se torna ainda mais urgente.
Eu
gostaria de tecer alguns comentários sobre as marcantes diferenças entre os
nossos dois países, sobretudo no que diz respeito ao atraso educacional
brasileiro que só recentemente vem sendo enfrentado com dignidade, sobretudo
após a redemocratização do nosso país.
Em
primeiro lugar, senhor reitor, a nossa independência ela não veio acompanhada
da república. A nossa independência, que ocorreu em 1822, estamos às vésperas
do nosso bicentenário, ela ocorre ainda nos marcos da monarquia. E o rei que
assume o Brasil é o filho do rei da metrópole cuja independência o Brasil
celebra em 7 de setembro. Comemoraremos 200 anos de independência. Mas estamos
longe de comemorar 200 anos de república no nosso país. E o arranjo de Estado
que foi feito distanciou o Brasil dos ideais republicanos e dentre estes ideais
a escola pública brasileira foi um sonho que foi postergado muitas décadas,
mesmo depois da proclamação da República.
O
segundo aspecto a considerar que distingue os nossos povos e a nossa história,
a história argentina da história brasileira, é o peso da escravidão no Brasil.
O
peso da escravidão no Brasil superou e muito todo sofrimento que pode ser
pensado no contexto latino-americano. Não só a população indígena foi
sobrepujada e em grande parte dizimada, mas a população trazida da África foi
subjugada e o Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, apenas em
1888, um ano antes da proclamação da República.
Um
outro fardo que pesa sobre os nossos ombros até hoje foi a contrarreforma que
aconteceu no Brasil sem nenhum vestígio da reforma, ou seja, nós vivemos no
nosso continente todas as agruras da contrarreforma sem respirar nenhum vento,
nenhum oxigênio que trouxesse ventos de liberdade no nosso continente. A
própria censura nasceu no Brasil antes da imprensa. Nós não tínhamos a imprensa
e já tínhamos a censura. Tanto do ponto de vista econômico na escravidão,
quanto do ponto de vista político com o estado monárquico, autocrático, quanto
do ponto de vista cultural, o Brasil sofreu revezes muito importantes e mesmo
após a revolução de 30, ainda assim os educadores mais progressistas foram
derrotados pelos governos de turno.
O
nosso Sarmiento foi derrotado nos anos 30.
Sabendo
que a Argentina viveu sua primeira reforma educacional mais profunda 50 anos
antes da nossa reforma. E a nossa reforma, mesmo tendo sido iniciada meio
século depois ainda foi mais acanhada que a reforma argentina do século
anterior.
Assim
se deu durante muitos anos, porque no curto período de democratização
entre o regime Vargas e a ditadura militar o Brasil respirou poucos ares
libertários. Houve avanços nos anos 50, mas avanços que não conseguiram se
sedimentar no Brasil. E a ditadura tratou de fazer o resto do serviço, tratou
de afastar dos nossos sonhos os ideais republicanos de uma escola pública para
todos.
Vimos
em 1964, com o golpe militar, os nossos melhores sonhos, dos educadores mais
avançados, serem postergados por duas décadas. Apenas em 1988, com a
constituinte brasileira, que nos entregou a carta que até hoje está em vigor,
só naquele tempo é que nós conseguimos vislumbrar os primeiros fundamentos, os
primeiros princípios do que viria a se tornar o sistema educacional brasileiro
atual.
Ainda
assim, mesmo depois da constituição promulgada, vivemos uma década ainda de
neoliberalismo que restringiu o orçamento de educação aprovado pelos
constituintes em 1988. Seis anos após a promulgação da carta constitucional,
nós aprovamos uma emenda constitucional suprimindo recursos da educação em
proveito de um ajuste fiscal supostamente necessário para a estabilização da
nossa moeda.
Foi
em 2002 que chegou ao poder na minha opinião um dos maiores brasileiros da
história, o presidente Luis Inácio Lula da Silva, um operário que não teve
acesso a educação formal, que não tem diploma universitário, embora hoje seja
detentor de quase 100 títulos de doutor honoris causa mundo afora e no Brasil e
seu vice-presidente um empresário extremamente bem-sucedido mas que tampouco
teve acesso à educação formal, como o presidente Lula, que deram impulso à
maior reforma educacional já vista no país.
O
Brasil, a partir do começo da década passada, abraçou a causa da educação como
nunca e passou a investir recursos cada vez mais vultosos em educação, a
começar com a revogação do dispositivo de 1994 que suprimia recursos da
educação. Um operário colocou no orçamento da educação o que um catedrático
havia retirado do orçamento da educação. E a partir daí as coisas começaram
efetivamente a mudar. Eu tive a honra de ser ministro do presidente Lula e da
presidenta Dilma por quase sete anos, atuei no Ministério da Educação por oito
anos e fui testemunha do desejo genuíno de dois presidentes de superar o tempo
perdido. Em busca do tempo perdido, e de colocar o Brasil no mínimo em pé de
igualdade com seus vizinhos latino-americanos, seja o Chile, a Argentina, o
Uruguai ou o México.
Estávamos
muito defasados em relação com os nossos irmãos latino-americanos, a nossa
população universitária passava de pouco mais que 1,5% da população brasileira
quando o presidente Lula tomou posse. Nos exames internacionais padronizados o
Brasil figurava em último lugar de todos os países avaliados pelo Pisa,
vinculado à OCDE. Tanto na educação superior, quanto na educação básica e mesmo
na educação profissional o Brasil estampava indicadores muito vergonhosos para
sua dimensão, para sua pujança, para o seu potencial.
O
que o período destes 12 anos demonstra é que sim com vontade política é
possível reverter um quadro extremamente desfavorável na área educacional. Não
se faz de um ano para o outro, mas em uma década você já começa a colher os
frutos de uma política determinada para a educação. Hoje quase 4% dos
brasileiros estão matriculados em universidade. Os negros que só entravam nas
universidades para fazer a limpeza dos vidros e do chão, hoje estão nos
melhores cursos do país: de medicina, de engenharia, de direito, de enfermagem,
de administração, de economia. Não há universidade pública federal que não
tenha um contingente expressivo de jovens egressos de escolas públicas e de
todas as raças, brancos e negros e de todas as classes sociais, ricos e pobres
convivendo em um espaço de pura excelência, que para ser considerado público
tem que contemplar todos os perfis que a nossa sociedade enseja. Hoje a cor da
universidade começa a mudar, a cor da pele da universidade. As vestimentas dos
alunos começam a mudar: existem alunos hoje com os trajes típicos das nossas
periferias. Hoje pessoas que não vislumbravam a possibilidade de entrar em uma
universidade têm o seu primeiro diploma na família. Muitos brasileiros detêm
hoje o primeiro diploma das suas famílias. Uma coisa espantosa: 40% dos
brasileiros, quase metade dos brasileiros que têm curso superior se formaram
nos últimos 10 anos.
O
que eu estou querendo dizer é que em apenas 10 anos nós quase dobramos o número
de brasileiros que têm diploma universitário. Isso nos coloca numa situação de
igualdade na América Latina. Mesmo nos exames internacionais, e nós fizemos
questão de apoiar as escolas públicas a partir do governo federal e no Brasil
as escolas públicas não são federais, são municipais e estaduais, como aqui em
Córdoba, ou seja, são mantidas pelos governos locais, mesmo assim nós fizemos
questão de criar um mecanismo de financiamento da escola pública, a partir de
recursos federais, mecanismos de gestão da escola pública a partir de
instrumentos desenvolvidos pelo governo federal e um sistema nacional de
avaliação escola por escola, avaliação que é divulgada para as famílias a cada
dois anos, para a que monitorem os indicadores relativos à qualidade. Hoje a
família brasileira acompanha os indicadores de quantidade, mas ela acompanha
igualmente, com a mesma transparência os indicadores de qualidade.
E
com isso o Brasil na década passada esteve entre os três países que mais
evoluiu em qualidade de ensino no mundo, tendo saído de uma posição muito
complexa, de uma base muito baixa, mas fomos o terceiro país que mais evoluiu
nos indicadores educacionais. Isso não é motivo em si mesmo de celebração,
porque o patamar atual ainda está muito aquém do potencial do nosso povo e da
nossa gente. Mas para um país que vedou cursos superiores, que vedou a imprensa
livre, que vedou a escola pública, que interrompeu processos históricos de emancipação
e de superação, de garantia de direitos, como fez o Brasil, eu acho que este
século deu testemunho de que nós podemos juntos acumular forças para superar
estes desafios.
A
nossa corrida, o nosso esforço, não é para superar a América Latina. O nosso
esforço é para que nós estejamos no mínimo no mesmo patamar e para que nós
possamos dar as mãos: argentinos, chilenos, uruguaios, bolivianos e
brasileiros. Eu tenho certeza de que se nós tivermos um intercâmbio intenso,
trocando as nossas experiências, nos visitando mais recorrentemente,
compreendendo melhor a nossa história, preparando melhor o nosso futuro, nós
vamos poder avançar juntos muito mais do que nós fizemos até aqui.
E
a América Latina tem pressa, não pode se manter estagnada do ponto de vista
educacional. E todos nós provamos que podemos fazer muito pela nossa gente num
período em que a democracia se consolida, que o debate de ideias se impõem, em
novos instrumentos de trabalho e novas tecnologias sociais surgem a cada dia,
tecnologia da informação revolucionando a comunicação entre as pessoas, nós
podemos efetivamente a partir do intercâmbio cultural e educacional oferecer
para os nossos povos desenvolvimento sustentável e de longo prazo, não apenas
na economia, gerando do emprego e renda, mas sobretudo no plano da cultura.
A
cultura latino-americana é uma das mais ricas e pujantes do mundo. Nós temos
cultura, nós exalamos cultura, nós produzimos cultura incessantemente, nós
iluminamos o mundo com a cultura que produzimos. Isso tem que se reverter
também no campo educacional, no campo científico. Temos muita interação
científica para fazer. O Brasil lançou um programa de interação internacional e
envio 100 mil brasileiros para fazer cursos no exterior, mediante um programa
chamado Ciência Sem Fronteiras. Quero crer que muitos brasileiros estejam hoje
na Argentina estudando, nas universidades públicas do país, e há muitos
argentinos hoje estudando no Brasil, no entanto a proporção ainda é muito
baixa. Nós temos que fomentar novos mecanismos de intercâmbio.
Não
pode ser tão difícil para um argentino fazer uma universidade no Brasil ou para
um brasileiro fazer uma universidade na Argentina. Não pode ser tão difícil
para um professor se manter seis meses ou um ano no Brasil levando os
conhecimentos que ensina aqui aos alunos brasileiros, o mesmo vale para os
professores brasileiros que se tivessem oportunidade estariam lecionando nas
universidades argentinas.
Eu
acho que há um caminho de intercâmbio muito grande e o continente europeu, que
é muito mais diverso que o continente latino-americano, mediante mecanismos de
integração universitária está liderando processos de intercâmbio a nível
continental com resultados efetivos. A Europa se levanta novamente a partir da
cooperação internacional, em termos de produção científica. Eu entendo que nós
devemos explorar essas possibilidades muito mais do que fizemos até aqui. Nós
ainda olhamos para o Mercosul como um arranjo econômico. Eu penso que os
educadores devem olhar o Mercosul também como um arranjo cultural e
educacional. Talvez se nós abraçarmos a ideia do Mercosul cultural e
educacional, nós facilitemos a vida dos nossos diplomatas quando celebrarem
acordos comerciais. A cultura e a educação dariam muito mais respaldo e
tornariam muito mais generosos os nossos diplomatas e economistas que estão
sentados às mesas e às vezes por um detalhe não chegam a um acordo em benefício
dos nossos povos.
Resumindo
a minha fala: eu, como ministro da educação no Brasil, pretendo explorar todas
as possibilidades de interação, criamos uma universidadeem Foz do Iguaçu, a
nossa Unila, Universidade de Integração Latino Americana, 50% dos estudantes da
Unila têm que ser latino-americanos, assim como o corpo docente tem que ser
obrigatoriamente metade latino-americana. Criamos uma universidade no Ceará, em
Redenção, que é a primeira universidade voltada para a integração do Brasil com
a África, em que 50% dos estudantes têm que ser oriundos do continente
africano, assim como o corpo docente. O desejo portanto de integração está
expresso em todas ações do governo brasileiro, sobretudo no período a partir do
presidente Lula. Há uma vontade, um desejo de integração. E eu penso que os
nossos sistemas educacionais, os sistemas de ensino e a nossa produção
científica teriam muito a ganhar se solenidades como essas servirem para
celebrar um entendimento dos nossos povos. Eu fico muito comovido com essa
homenagem, vou levar no coração o resto da vida o dia de hoje por ter sido
reconhecido fora do meu país, por um povo de um país que eu aprendi a amar.
Viva a Argentina, viva o Brasil, viva a Universidade de Córdoba! Obrigado.