sábado, 21 de maio de 2011

Estávamos sós. Ainda estamos!


Bob, Carol, Ted and Alice: desvio ou tendência de comportamento?





Um dos refrãos mais batidos é aquele que diz respeito ao país em que imaginamos viver e aquele em que de fato vivemos. Esta discussão toda sobre o chamado kit homofobia do Ministério da Educação, elaborado pela ONG Pathfinder é um exemplo de que o confronto com a realidade nem sempre sopra ventos progressistas e pacificadores.
A intenção das autoridades educacionais brasileiras é dar formação aos professores das escolas públicas do ensino médio e torna-los capacitados para lidar com problemas relativos à homofobia. Todos nós já fomos jovens e sabemos que não faltam maldade e preconceito nos corações juvenis.  Mas, a simples menção do tema já provocou uma reação desmedida e inquisitorial.
É curioso que se fala tanto em bullying, principalmente depois do massacre de Realengo, mas, a sociedade tão consternada com o que aconteceu, é incapaz de discutir com um mínimo de racionalidade a questão da homofobia e das diferenças de comportamento.
O caso da professora que encaminhou à diretoria da escola e notificou os pais do comportamento do filho que estaria acariciando os cabelos do colega da carteira da frente, é bem ilustrativo. No comunicado chegou a falar em “comportamento ousado”.
O menino defendeu-se dizendo que na verdade estava tirando um chiclete do cabelo do amigo. Mas, e se tivesse mesmo acariciando o companheiro? Onde está a ousadia? Se ele tivesse dado uma porrada na cabeça do coitado, bem aí seria macho e estaria dentro dos cânones esperados.
A sociedade brasileira não consegue se colocar diante de temas relativos a comportamento com um mínimo de lucidez. E não é só a questão da homofobia. Tente conversar com alguém sobre eutanásia!
Esta discussão me trouxe à lembrança um dos episódios mais sórdidos que eu vivi em minha modesta carreira jornalística. Em 1995 eu era editor de Comportamento da revista IstoÉ, e me orgulhava muito de fazer parte de uma equipe progressista, arejada, livre de conceitos e preconceitos. Uma noite de fechamento passei no bom e velho Gigetto antes de ir para casa. Era uma madrugada alta e nada melhor do que uma boa salada corintiana e um copo de vinho para revigorar o espírito.
Aliás, o Gigetto era um dos points mais badalados da intelectualidade paulistana. Era frequentados por jornalistas, artistas de teatro, teatrólogos, cineastas, prostitutas de todos os níveis, um ambiente maravilhoso, principalmente lá pelas duas da madrugada. Eis que, não me lembro de quem, puxou um destes assuntos capazes de varar a madrugada. Comentava um texto do sempre genial Otávio Frias Filho, segundo o qual o bissexualismo era uma tendência de comportamento.
A conversa seguia animada com a relação de bissexuais assumidos, outros enrustidos, até que alguém disse com todas as letras: “Onde está escrito que eu não posso me apaixonar por um homem ou por uma mulher, pelos dois simultaneamente, ou em momentos diferentes da minha vida?”


Barbara Stanwick: lábios rubros, pernas torneadas e bisexualismo assumido



Fui para casa com a cabeça a mil. Que polêmica interessante! Seria mesmo o sexo do futuro, totalmente libertado de preconceitos? Liguei a televisão enquanto me despia e ainda adormeci vendo a grande Barbara Stanwick em Adorável Vagabundo, de Frank Capra.
Barbara, uma das mais lindas e expressivas atrizes de Hollywood, era bissexual juramentada. E eu confesso que esta condição nunca me impediu de sonhar com seus lábios rubros, ou com suas pernas maravilhosamente bem torneadas. Polêmica, corajosa, ela fazia dupla com a angelical Olivia de Havilland. Ambas eram exemplos de musas gauches no glamour hollywoodiano.
Na manhã do dia seguinte, reuni toda a minha equipe, a melhor equipe de repórteres com quem eu trabalhei formada pelas geniais Eliane Lobato, Carla Gullo, Cilene Pereira, Heloísa Reinert e Alessandra Nahra. Troquei duas palavras com meu adjunto, Peter Moon, e discutimos avidamente uma pauta ampla, capaz de provocar uma reflexão sadia entre nossos leitores.
Sabia que estava mexendo em um vespeiro. Por isso mesmo fui até o diretor de redação, Tão Gomes Pinto, mestre e amigo, e expus minha ideia. Ele acendeu um cigarro, jogou as baforadas para o teto e me disse: “Pode ser uma puta matéria. Toca. Mas, não defenda na reunião de pauta”.
Não perdi meu tempo com a recomendação que ele me deu. Distribui as pautas entre as repórteres e liguei para meu irmão e amigo, Osmar Freitas Júnior, nosso correspondente em Nova York.
Dizer que o Osmar é competente, é pouco. Ele é apenas um dos profissionais mais competentes que eu conheci em 40 anos de profissão. Sua excitação ao telefone foi imensa. Imediatamente ele começou a desenvolver ideias e mais ideias, personagens e mais personagens. (Ah Osmar amigo! Que saudade das nossas conversas da nossa convivência.)
A reportagem começou a ganhar forma. Peter Moon era um adjunto perfeito. Executava a perfeição aquilo que eu imaginava, sem que eu sequer precisasse falar. Enfim, veio a reunião de capa, na terça-feira. Todos os editores em volta da mesa e o Tão anuncia que a capa seria da editoria de comportamento com 16 páginas.
A Thais, editora de arte, uma das colegas mais lindas com quem eu trabalhei, me agarrou pelo braço e me arrastou para sua mesa.
- Italiano, de que se trata?
- Bissexualismo.
- Grande, sensacional, vamos fazer uma capa de arromba!
- Thais, o Tão está mantendo em segredo. Não sei por quê? Mas, é melhor trabalharmos como ele quer.
- Te prepara querido, o mundo vai cair na tua cabeça.
Caiu. Quando o tema da capa tornou-se conhecido, houve um levante dos editores. Gente moderna, culta, progressista, todos torceram o nariz. Ficamos sozinhos, eu, o editor assistente do Tão, Hélio Campos Mello, e a editora de arte, a Thais. Todos os demais vociferaram barbaridades que fariam o Jair Bolsonaro enrubescer.
No dia seguinte, chegamos cedo, íamos começar a editar a reportagem. Peter me deu um abraço forte:
- Estou com você para o que der e vier.
Uma assustada Terezinha, a secretária da redação, com o rosto envergonhado, me chama para comunicar que o secretário de redação, uma figura obscura e triste, que eu não vou citar o nome, queria um tête-à-tête comigo, na sala dele.
- Você vai cair. Falei com o Domingão (o dono da revista) e se o Tão insistir na sua reportagem ele cai também. Ninguém vai querer ser processado ou ver a revista recolhida das bancas. Diga-me, afinal, você é viado?
- Olha, a minha opção sexual só diz respeito a mim mesmo. Não lhe devo satisfação sobre isso. Mas, eu te devolvo a pergunta: Você é jornalista?
Voltei para minha mesa apreensivo. Sabia que o Tão estava em reunião com o Domingão.  A doce Carla Gullo foi atrás de uma xícara de chá para mim. Sabia que eu estava sob pressão. Aliás, nós todos estávamos. Os olhos azuis da Alessandra me fitavam como um farol. A Eliane tinha vindo do Rio, mais experiente postou-se ao meu lado e puxou uma conversa sobre delícias gastronômicas cariocas.
Foram longos e intermináveis minutos. Até que o Tão irrompeu pela redação. Bem ao seu estilo, atacou pelas bordas:
- Thais, capricha, porque vamos mesmo de Bissexualismo. Italiano, vamos começar a fechar esta merda logo.
A redação que estava em um estranho silêncio, voltou ao ritmo normal. Peter me piscou com um sorriso. Eliane e Carla assumiram sua posição ao meu lado.
- Vai Italiano, agora é com você. Bota para quebrar!
Os textos fluíam aos borbotões. Ninguém se mexia. Nem saímos para almoçar. Heloísa providenciou os sanduiches e os refrigerantes. Peter parecia uma máquina. Sóbrio e eficiente. Já era noite quando terminamos e o Tão começou a ler. Acendi o milionésimo cigarro e tomei pela enésima vez aquele café frio e fraco da garrafa térmica. Não nos olhávamos. Todos parecíamos ocupados com outros assuntos.
Finalmente o Tão saiu do aquário, veio em nossa direção:
- Excelente! Belo trabalho. Thais, baixaaaaaa!
Foi, sem dúvida, um dos momentos mais emocionantes da minha vida profissional. Eu sabia que não ia provocar nenhuma revolução, que não havia nenhuma revelação bombástica, mas com certeza os milhares de leitores da revista iriam poder refletir sobre o assunto. O resto seria com eles.
Na semana seguinte, quando me apresentei para a aula semanal daqueles pobres coitados da FIAM que eram meus alunos, no último ano de jornalismo, constatei que a maioria estava com a revista entre seu material. A capa de IstoÉ era o assunto da semana.
Não houve passeata, nem audiência pública. Não fizeram uma estátua para ninguém. A revista não foi recolhida, nem processada. Vendeu como água. Na verdade esgotou na banca na segunda-feira (ela circula aos sábados).
Da minha parte, sobraram inimizades, a insistente pecha de louco, e a convicção de que por mais avançados e progressistas que as pessoas podem ser em todos os temas, quando o assunto é comportamento, e comportamento sexual, a maioria era tremendamente conservadora. Eu já sabia, mas reafirmei minha convicção de que o Tão era o mais brilhante editor de revista da imprensa brasileira. Que a minha equipe era leal e competente. Estávamos sozinhos. E ainda estamos 16 anos depois.

2 comentários:

  1. Parabéns pela coragem! É muito triste constatarmos que 16 anos depois, as pessoas continuam com essa cabeça tão tacanha!!

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  2. Nunzio, gostei demais do texto, da história, e de ter feito parte dela... mas não vamos esquecer da Chantal Brissac, que foi minha valorosa dupla e guia nessa matéria. Beijos!

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