sábado, 23 de julho de 2011

Lembranças de El Reloj


Lavalle: a calle que não dorme, cenário de muitas lembranças




A sensação de vazio e de frustração perpassou meu coração naquela madrugada fria de Buenos Aires. O vento que vinha do Prata, gelado, inundava minhas narinas e entorpecia o meu rosto. Eu caminhava pelas ruas de San Telmo, sem destino, iluminado apenas pelo reflexo da lua nos paralelepípedos úmidos. Não sei de onde eu vinha, mas também não sabia para onde eu ia. As luzes distantes do centro eternamente vivo pareciam um convite  ao esquecimento e, enfim, já tomado pelo frisson da calle que não dorme, entrei na Confeitaria El Reloj, sentei-me a uma mesa discreta, pedi um Remy e passei a sorve-lo junto com as lembranças de um sonho, ao som de uma caixa de música, onde Gardel ainda parecia viver com toda a energia.
Os rostos pareciam desfigurados nas mesas ao lado. Aqui e ali, já notava que as meninas da Corrientes estavam com ar decomposto de quem havia encerrado o expediente. Ainda restavam alguns personagens dos teatros, que algumas horas antes haviam incorporado e dado vida aos sonhos e as frustrações das plateias. Um menino entrou no salão oferecendo a quinta de La Razon.

Típica confiteria portenha: glamour de um tempo passado

O Remy corretamente servido aqueceu no calor das minhas mãos e ao percorrer a minha garganta me trouxe  a saudade de Cinthia. Foi como se meus olhos pudessem recriá-la à minha frente. Ela gostava que eu a chamasse de pequena, mas não me parecia pequena, não era do tipo mignon. Talvez porque quase sempre usasse sapatos com saltos ou talvez porque para mim ela parecia capaz de me envolver. Elegante sim. Mas, sempre com roupas simples, de algum outlet, ou da liquidação da Once. 
E ainda assim seu poder de sedução era irresistível.
Seus cabelos castanhos bem cuidados passavam pelos ombros, mas compunham com charme o rosto comprido, onde os lábios finos marcados por batom eram apenas um traço e os olhos azuis pareciam dois faróis em alto mar a iluminar e conduzir um navegante perdido.
O som de uma discussão entre um casal na mesa ao lado quebrou o encanto da visão da minha saudade.
- Não. Não. Não. Sempre não. Você só me diz não – dizia uma jovem cuja voz mostrava o tom da alteração e da confusão da sua alma. Me chamou atenção a firmeza da jovem, que parecia cruel diante dos olhos suplicantes do amante ou ex-amante. Entre eles, claro, havia um abismo. Para ela sorria o futuro. Para ele, podia-se notar o fim de uma ilusão que se resumia em toda a vida.
A caixa de som trocou Gardel por Goyaneche e o salão se aquietou. Como se todos reverenciassem la garganta de arena recitando Como dos extraños. Pedi mais um Remy e tentei projetar Cinthia de novo, e a minha mente viajou no passado. Diante de mim, sua boca me dizia que acabara. Não existia mais romance. Nossas vidas iriam se separar. Seus olhos encharcados, entretanto, me diziam outra coisa. Me suplicavam para romper com aquela realidade, para evitar que aquilo acontecesse. Era como se eu ouvisse:
- Faça parar. Não deixe acontecer.
Mas, suas palavras, ao contrário, eram frias e duras.
- Você não faz mais sentido. Vou retomar a minha vida com Rodolfo.

Plaza San Martin: desenlace triste de uma paixão
As folhas da Plaza San Martin ainda se alvoroçaram enquanto eu acompanhava o seu caminhar elegante, o seu corpo esguio e suas pernas vigorosas que a levavam para longe de mim. Quando ela desceu as escadas do Metro, era como se um capítulo da minha vida se encerrasse. Era como se a vida não fizesse mais sentido. O absurdo inundara tudo como um tsunami irresistível. As árvores se distorceram, a visão da Plaza Retiro ficou borrada como um quadro impressionista.
A angústia da lembrança me traz de volta para o Remy. Um suor frio percorre a minha fronte e o som de talheres, pratos e bandejas me devolve a voz de arena, que ainda recita
- Destrozo mi corazón!
Virei o resto do Remy e pedi outro ao garçom. O salão ficou quente. Na mesa à minha frente, um casal se entreolhava apaixonado. A caixa de som começou a tocar Ausencia, na voz de Amelita Baltar. Alguém entrou e uma lufada de vento frio fez balançar a cortina encardida da confiteria e perpassou as mesas.
Uma destas mensagens de informação automática me desperta do torpor. Me vem a lembrança a primeira noite, numa cidade qualquer, eu e Cinthia separados em quartos diferentes de um hotel medíocre de La Pampa. Era impossível superar a barreira,  ela estava dividindo um apartamento e eu, enlouquecido, chegava a sentir o seu perfume doce. Trocamos mensagens de desejo e de amor pelo celular. Queríamos nos tocar, colocávamos a mão contra a parede, chegamos a sentir a respiração um do outro.
Finalmente chegou a nossa vez. A primeira. Era dia de seu aniversário, um final de verão ainda quente, em um balneário uruguaio. A janela estava aberta quando bati a porta. O meu coração quase saia pela boca de ansiedade. A negligee negra cobria seu corpo e a fazia ainda mais elegante. Os cabelos propositadamente desajeitados caiam pelas costas quando eu a abracei e beijei sua boca. Senti o seu corpo perfeito colado ao meu e o toque de seus dedos nas minhas costas.
Nunca uma mulher havia me tomado daquele jeito. Era como se nossos corpos fossem superados e nossas almas se colassem.
O cognac fazia efeito e eu já sentia calor suficiente para tirar o cachecol e abrir a camisa. Bebi o resto e pedi a conta. O garçom não me dirigiu a palavra. Típico. Ainda me olhou por cima, como se quisesse me avaliar a existência. Saí pela calle Tucuman, os primeiros raios de sol me atingiram as costas. A cidade que não dorme iniciava outro dia. E eu também.

Um comentário:

  1. ah...gostei disso! tenho belissimas recordações de buenos aires, e, especialmente de el reloj, mas de época diferente da sua. Início da década de 1970 quando fui enviada pela USP e Secretaria da Fazenda para ajudar os "meninos" economistas do Instituto Torquato di Tella, com novas fórmulas de arrecadação de imposto de mercadorias...Lá conheci um peruano, arquiteto, economista e poeta, sobrinho-neto de Cesar Vallejo...Terminavamos nossa noite com poesia no el reloj...Grandes noites!

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