terça-feira, 19 de julho de 2011

A musa do João. Uma mulata qualquer coisa.



Esmeralda, musa da Vai Vai: olhou direto nos olhos de João e mudou de escola



João. João de qualquer coisa. Trabalhava como estafeta em um banco da rua XV de Novembro, muito embora já tivesse passado dos 30. Na verdade, o tempo era uma tortura para ele.  Todos os dias cronometrava rigorosamente o percurso do Metro, da estação da Vila Matilde até a praça da Sé. O tempo em que percorria alguns metros no meio da multidão. O tempo que o elevador demorava e orgulhava-se de chegar à repartição sempre antes dos mais jovens.
O tempo passava e João continuava sempre no mesmo emprego. Levando e trazendo documentos, acudindo as necessidades básicas da chefia.
- João vai buscar um café para mim.
Ou melhor:
- João vá até o Caixa e traga o dinheiro que sacamos.
João era correto. Corretíssimo. Uma vez recusou participar da divisão de um bolo conquistado com a valorização espontânea de algumas ações não contabilizadas. Imaginou que era um dinheiro estranho e por isso preferiu ficar de fora.
Aliás, dinheiro não fazia falta a João. Ele não sonhava com ter seu carro próprio e sentia-se confortável vivendo com a mãe na casa de um comodo no fundo de um sobrado na Zona Leste. Para ele, o que contava era o conforto e a tranquilidade. Ralou muito para comprar a televisão digital, tela plana, onde ficava o final de semana todo à espera da exibição das bailarinas dos programas de auditório.
João não tinha amigos. Não tinha passado. Não tinha futuro. Adorava carnaval, mas não tinha coragem sequer de se misturar com a turma do seo  Nene, da azul e branca de Vila Matilde. Preferia passar a madrugada vendo pela tevê e se excitava ao ver as cabrochas das escolas de samba rebolando pelo asfalto. As vezes, quando a mãe se entregava ao sono, ele se satisfazia em meio a uma fantasia.
Foi num destes carnavais que João foi tomado por um destes sonhos que ele nunca soube explicar nem para ele mesmo. Era a madrugada de sexta-feira, a Vai-Vai se esparramava pelo sambódromo, quando ele percebeu que uma das suas passistas, olhava detidamente para ele.
Como assim? Exatamente isso. João estava convencido que a passista olhava para a câmara de televisão, mas na verdade queria olhar seus olhos.
João foi tomado por um sentimento de euforia muito grande. Era como se a passista se exibisse apenas para seus olhos. E ele viajou nas formas perfeitas da passista. Os quadris generosos, as coxas fortes, as pernas longas, os seios fartos, os lábios carnudos, os cabelos negros encaracolados e os olhos cor de mel.
João nunca mais tirou a imagem da passista de sua mente. Viajava com ela no metro, passava o dia se imaginando ao lado dela.
Passou a ser repreendido no trabalho:
- João acorda, você derramou o café.
Ou ainda pior:
- João porra, porque você não pegou a assinatura no cheque?
O tempo inclemente foi se arrastando e João sempre com a imagem da passista, decidiu que iria até a quadra da Vai-Vai, no Bixiga, nem que fosse apenas para quem sabe conhecer a musa de seus sonhos.
Numa noite ficou atrás de uma coluna a noite toda, quando a musa de ébano chegou. Vestida com uma saia muito curta que revelava os contornos de suas coxas e os seios expostos em uma frente única que parecia fazê-los ainda maiores. João fixou em êxtase. Mas, seu sentimento de euforia acabou quando percebeu que a passista, cujo nome era Esmeralda, provocava a libido de muita gente na escola de samba. E ela vivia cercada por outros integrantes da escola.
João preferiu recolher-se. Guardou para si mesmo a imagem que tinha dos olhos da passista brilhando para ele no desfile do ano passado, pela TV. A visão real de Esmeralda havia derrubado seu sonho. Ele jamais poderia chegar até ela. Era impossível.
O tempo continuou se arrastando. João ficou perturbado no desfile daquele ano. Ficou com os olhos grudados na TV, mas não identificou Esmeralda.
Aos poucos a lembrança daquela musa foi se esvaindo de sua cabeça. Ele perdera uma promoção no banco. Mas, isso não era importante. Continuava como estafeta, apesar da idade. Trocou a televisão. Comprou uma nova.
Em um sábado, como todos os sábados, João acordou e sentou-se na porta do cômodo nos fundos da casa onde morava com a mãe, olhava as nuvens e guardava o tempo passar, quando a vizinha tomou coragem.
- Seo João, o senhor fica ai parado. Por que não vai na quadra do seo Nene, tem uma feijoada lá e eu tenho um ingresso aqui que não vou usar.
João pensou em um primeiro momento em recusar. Mas, que mal haveria em comer uma feijoada discretamente ainda que ninguém percebesse a sua presença?
Vestiu uma bermuda velha, na verdade uma velha calça jeans que a mãe havia transformado. Uma camiseta branca, sandálias de dedo e se misturou no meio do povo que eufórico se acotovelava para comer a feijoada.
Seo Nene fazia a feijoada para arrecadar fundos complementares para ajudar no desfile. Toda a Zona Leste parecia estar na quadra naquela manhã de sábado.
João tomou a primeira cachaça misturada com o caldinho do feijão. Depois tomou a segunda pura. E a terceira. Finalmente pegou um prato fundo. Colocou muita carne, gorda, orelha, rabo, paio e costela. Farinha de mandioca, pimenta, arroz, couve rasgada, laranja e ainda uma bistequinha bem frita. Repetiu mais de uma vez. Tinha adoração por feijoada. E derramava a branquinha entre um prato e outro.
Comia com tal voracidade que no terceiro prato, quando enfim decidiu sentar-se em uma mesa de tábuas improvisada, chamou a atenção.
Ficou horrorizado quando percebeu que provocava sorrisos e curiosidade. Logo ele, estafeta de um banco na rua XV de Novembro, mesmo que já tivesse passado dos 30.
Sentiu-se incomodado. Também porque depois de comer por três vezes toda aquela feijoada, ainda mais regada a cachaça, sentiu um peso muito forte.
Eis que Esmeralda adentra a quadra. Por que? Ora porque em uma fantasia as coisas acontecem sem razão de ser.
E desfilava sobre uma sandália alta que lhe fazia parecer ainda mais alta do que era. Usava um vestido azul, curto e justo, com um decote de tal forma generoso que à sua entrada fez-se um silencio mortal.
João imaginou que estava delirando. Seria efeito da cachaça? Da feijoada? Ou dos dois? Sentiu um tremendo mal estar. Mas, Esmeralda seguiu em sua direção, sentou-se ao seu lado. Mostrou seus dentes alvos em um sorriso, debruçou-se sobre João como a lhe mostrar a fartura dos seios e disse:
- Hoje é o seu dia João. Estou aqui para você. Quero que você me tenha do jeito que quiser!
João levantou-se cambaleante, esticou elegantemente o braço para Esmeralda e saíram abraçados.
Na segunda-feira, João, o estafeta de mais de 30 anos de um banco na rua XV de Novembro não foi trabalhar. Mas, ninguém percebeu. Nem ninguém percebeu que ele não pegara o metro, sempre a mesma hora. E muito menos que cronometara com rigor o percurso que caminhava a partir da Estação da Sé.
João nunca mais foi visto.
Esmeralda naquele ano saiu de madrinha da bateria da escola. Trocou a Vai-Vai pela Nene da Vila Matilde.
João? João de qualquer coisa? Nunca ouviu falar. 

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