sexta-feira, 29 de julho de 2011

Histórias do Sul do Mundo -- 1

A pujante e progressista Guarapuava: meio caminho entre Curitiba e Foz



Como isso tudo começou? Sei lá talvez no Julio César, de William Sheakespeare, na célebre oração de Marco Antônio, ou no prólogo de Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo, a ópera predileta do meu pai e do saudoso amigo Mário Garófalo. O certo é que lá fui eu, pilotando uma velha Variant amarela pela Rodovia Régis Bittencourt, em direção a um porto seguro.
Exílio? Não. Muito chique. Fuga mesmo.
Ainda me lembro do velho Agostinho, ascensorista do Estadão desde que inventaram o elevador, me dando a dica salvadora.
- Não desce aqui não que estão atrás de você.
Naqueles tempos, uma dica como esta poderia ser a diferença entre existir e não existir. Entre liberdade e cárcere.
O tempo passou numa velocidade impressionante. Foi tão rápido que em minutos eu estava na estrada com os poucos pertences que tinha. A estrada era pouco mais do que uma pista inglesa, sem acostamento ou sinalização, toda ela cheia de caminhões de todos os tipos. Mesmo assim, era difícil me concentrar no percurso.
Cada vez que passava por um posto da Polícia Rodoviária Federal, minha respiração me denunciava. A velha Variant engasgava aqui e ali, mas subia com força e descia com embalo.
Levei 10 horas para chegar a Curitiba. Logo achei o endereço que me abrigaria. Um simpático sobrado numa esquina charmosa, onde um pequeno curso d’água era margeado por salgueiros.
A primeira noite foi um sufoco. Eu ouvia a catraca do semáforo. Trac.Trac. Ou voltava para a estrada e revia cada um dos muitos sustos que passara ou pensava nos amigos que haviam caído e que sabe deus o que estavam passando.
O frio do clima em Curitiba não é a coisa mais gelada da cidade. No primeiro domingo, fui com um compadre literalmente tomar sol na Rua XV, a Rua das Flores. Uma polaca lindíssima passou por nós. Meu amigo, um Don Juan perdido, correu na frente dela. Parou numa barraca, comprou uma rosa e ficou esperando por ela, com a flor e um sorriso. A moça chamou a polícia e nós saímos correndo pela Praça Tiradentes.
Hoje é engraçado. Na época foi dramático.
Aos poucos, entretanto, o velho sótão, que eu repartia com outro foragido, ganhou ares de La Boheme. As dificuldades tornaram-se poéticas e até o frio, que me fazia bater os dentes, passou a ser comum. Nada que um suéter não resolvesse.
A vida era muito difícil. Cansei de roubar sopa de saco no supermercado. E por mais de uma vez assaltamos a comida do cachorro do vizinho. Era uma ação complicada. Um de nós segurava o cachorro e o outro separava os nacos de costela de boi, que depois seriam refogadas e servidas como um manjar. Pobre cachorro!
Outra das minhas peraltices consistia em roubar a gasolina do Fusca do velho que morava em frente e deixava o carro dormir na rua. Tínhamos a manha de abrir o capô do carro e bombar a gasolina com uma mangueira. O velho nunca suspeitou. Só reclamava que o carro dele bebia demais.
Uma manhã, soubemos que havíamos ganhado a incumbência de promover a inauguração de um hotel, cinco estrelas, na cidade de Guarapuava, a meio caminho entre Curitiba e Foz do Iguaçu. Criamos os anúncios, a mídia, produzimos tudo e planejamos a inauguração com a presença do governador e de altas autoridades civis, militares e eclesiásticas.
O dono da agência, meio sem jeito, afinal éramos todos meninos, sem malícia, me chamou para uma conversa reservada. Queria me dizer que eu deveria selecionar quatro moçoilas para funcionar como hostess no dia da inauguração.
E lá fui eu, ingênuo como um pato, a uma agência de modelos que funcionava no Alto da Glória.
Me recebeu uma deusa negra. Olhos enormes. Cabelos lisos, negros e brilhantes. Me senti mal folheando os catálogos. Que situação! E qual critério? Juntar sujeito, predicado e complemento seria pedir demais?
Enfim, decidi escolher uma morena, uma loira e uma ruiva.
- Mas, você não quer quatro? – me perguntou a deusa negra.
- A quarta é você, meu anjo.
Cantadinha ordinária, reconheço. Mas, por alguma razão maravilhosa, deu certo. A moça, que se chama Anita, ficou toda-toda.
A inauguração foi um sucesso. As moças, as três, dormiram rigorosamente acompanhadas naquela noite. Eu e  Anita dormimos sós. Eu pensei nela. Não sei se ela pensou em mim. Hoje acredito que sim. Na época, não acreditava nada.
Anita foi uma das minhas melhores amigas. Uma mulher que se revelaria extraordinária. Ensinou-me muito. Deu-me muito amor e carinho. Neste episódio a gente só começou a rascunhar uma relação que jamais se extinguiria. Hoje não sei mais dela. Evaporou-se em um casamento no Rio. Às vezes me surpreendo pensando nela.
Acho que o mais íntimo que chegamos foi um beijo, certa madrugada...
Mas, esta é uma história que eu conto em outro post.

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