sábado, 12 de novembro de 2011

Ciao Coccodrillo!


Il Coccodrillo: foi preciso uma crise que quase derrubou o capitalismo para tirá-lo do poder



Coccodrillo é como o cineasta italiano Nani Moretti chama Silvio Berlusconi. Parece que depois de mais de 30 anos, a Itália, enfim, vai ficar livre deste réptil pré-histórico. Não bastaram as denúncias de corrupção, o exercício descarado do poder de intimidação, o gangsterismo, os escândalos sexuais. Foi preciso que o capitalismo e a unidade europeia entrassem em barafunda para apear o homem do poder. Uma amiga minha lembrou-me esta semana: “É a economia estúpido!”

Berlusconi é um cadinho de ingredientes malévolos. Tem a simpatia e a obstinação televisa de seu xará Sílvio Santos, a longevidade de Sarney, práticas políticas que fariam Jimmy Hoffa parecer um menino peralta, uma moral que faria Toto Riina enrubescer. E se pudesse, Benito Mussolini faria o seguinte comentário: “Puxa, eu pensei em fazer como ele, mas não tive coragem!”

Certa vez, lá pelos anos 90, eu degustava um glorioso bacalhau no Francisco, secundado por um copo de Barolo, com um amigo cuja função em Brasília era defender os interesses da família Marinho. Mais que isso, como ele dizia: “Eu não trabalho para a Globo. Trabalho para o dr.Roberto”.  O pescado tinha a qualidade de sempre e o vinho inundava o ambiente com seu aroma madeirado forte, quando este amigo sacou rápido:

- Venha cá, nós estamos com problemas com a Telemontecarlo na Itália. E o dr.Roberto vai para cima de um tal de Berlusconi. Você conhece o cara?

- Hummm! Conheço. Diga ao dr.Roberto que qualquer, repito, qualquer acordo é melhor. Se ele peitar este cara, acredite, todo o império da Globo no Brasil corre risco.

O recado chegou ao destinatário, tenho certeza. Outros recados também chegaram. A Globo teve um prejuízo tremendo, mas o pesadelo da Telemontecarlo acabou. Vida que segue. Jogo jogado, como diria meu mestre Gaspari.

Berlusconi amealhou nas últimas décadas do século XX um poder impressionante. De dono de uma modesta emissora de tevê passou a liderar um dos maiores conglomerados de comunicação da Europa. Uma meia dúzia de emissoras de tevê, editoras como a tradicionalíssima Mondadori, jornais, emissoras de rádio e até uma produtora de cinema tudo caiu nas mãos dele. Dizia-se que seus argumentos eram “irresistíveis”. 

Politicamente o Coccodrillo conseguiu sintetizar o que havia de pior em termos de ideologia. Aliás, ele representava a não ideologia. Defendia a oportunidade e o oportunismo. Surfou na onda do neo-liberalismo, com pitadas grotescas do fascismo mais barato. Justiça social? Solidariedade? Imigração? Desequilíbrio regional? Nada disso. Olhe para você, não para o seu vizinho. Faça como eu: seja feliz, ainda que todos ao seu redor estejam infelizes.

Pode parecer inacreditável, mas este ideário prosperou, e como, no mesmo lugar onde a luta pelo socialismo alcançou suas maiores vitórias. Apesar da Igreja Católica, do estado fascista, da democracia cristã e da máfia, inegavelmente foi na Itália onde o movimento social conquistou seus maiores avanços no século XX. Todo o castelo ideológico italiano que floresceu no imediato pós-guerra e que levou o mundo a refletir sobre o destino das massas trabalhadoras e que, na voz e na genialidade de um Enrico Berlinguer, se afastou do modelo totalitário soviético ou chinês e buscou a racionalidade e o pragmatismo do euro-comunismo, nascido nas alamedas da Universidade de Bolonha. Tudo isso ruiu diante do sorriso cínico e os cabelos cheios de brilhantina do Coccodrillo.

Eu estava na Itália em 2006 e acompanhei de perto o drama da eleição daquele ano, quando os votos de um senador na Argentina salvaram a eleição do professor Romano Prodi e deram ao país um gabinete tão instável que sua duração efêmera prenunciava a crise que viria e pela esquerda, é claro, onde os valores ideológicos fariam com que a ruptura fosse de fato irreversível.

Ainda me lembro da perplexidade que me acometeu quando estudava os mapas daquela eleição e não me conformava com a vitória do Coccodrillo na Liguria, no Piemonte, na Lombardia, no Veneto e na Emilia Romana. E as nossas vitórias na minha Sicilia, na Campana e na Reggio Calabria, ou seja, nos rincões mais profundos da Itália meridional, exceção a gloriosa Toscana que se manteve fiel. Mais grave era o perfil do eleitor: o voto jovem até 25 anos estava todo concentrado na direita.

A Itália pagaria caro por isso. Não bastassem as diversas cenas de constrangimento internacional, a crise deflagrada pelo Goldmann Sachs e pelos bancos americanos iria colocar a economia europeia em crise e diante disso iria aflorar a realidade. A velha Bota deve mais de 142% de seu PIB. Suas reservas estão exauridas. A capacidade de gestão do governo mínima.

Em entrevista na edição de hoje, dia 12 de novembro, publicada em O Globo, o professor Toni Negri define Berlusconi como um modelo de não representação política. O bom mestre, uma das mais lúcidas mentes do mundo pós-marxista, questiona, e com razão, a representatividade. Lembra que o estado do Bem-Estar Social, nos moldes do New Deal de Roosevelt , está definitivamente enterrado.

Negri acredita que esta crise entre os países ricos da Europa, mais o habitual vilanato estadunidense, precipitam uma crise de modelo. Nas suas palavras, o Império alimentado e gerido pelas grandes corporações, acima e além das fronteiras geográficas e ideológicas, está em cheque.

Conheci ontem aqui em Brasília o professor e jornalista argentino Luis Tonelli. Ele me chamou a atenção para um fato que não me havia ocorrido. Tão cioso de seu poder e voltado apenas para seu próprio umbigo, o Império não se deu conta que a geografia do mundo havia mudado. Que surgiram os BRICs, que a América Latina aprendeu a conversar e entendeu que poderia se bastar. Em suma, que o desenho do mundo havia mudado e que nós, os bárbaros, no dizer de meu irmão Gustavo Iaies estamos ponendo el mundo de rodillas.

Pode ser. Tonelli tem razão. Gustavo expressa mais um sentimento. De qualquer maneira, o Coccodrillo terá que se aposentar. A Europa terá que repensar um pouco seu modelo. Estas ongs internacionais como a Unesco e similares terão que refrear a arrogância e nos olhar com outros olhos. Melhor assim.

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