terça-feira, 15 de novembro de 2011

O velho que virou jovem e o jovem que virou velho


O velho e o jovem Nunzio: qual é qual?


Um dos problemas de ser homônimo de seu pai é a designação. Assim, por exemplo, a minha mãe para definir que fala do meu pai, refere-se a ele como o velho Nunzio. E a mim, como o jovem Nunzio. No passado, meu pai era o seo Nunzio, ainda que de forma jocosa e respeitosa, meu filho Enrico, as vezes me chame assim, sem se dar conta que na verdade invoca o avo.

O velho Nunzio morreu em 1968, aos 67 anos. Sonhava em me ver formado advogado ou administrador de empresas e tudo que ele odiava era que eu me formasse em jornalismo ou política. Influência da aversão que ele tinha ao fascismo em geral e a Mussolini em particular.

Nestes 42 anos sem o velho Nunzio, entretanto, eu migrei da Física justamente para o jornalismo, onde acredito desenvolvo modesta carreira e ocupei, ainda que nos bastidores, meu papel de aprendiz de feiticeiro na política.

Mas, difícil mesmo foi constatar com o passar do tempo, que eu me transformei no velho Nunzio e que o meu pai, para sempre será o jovem Nunzio, não pela idade mas pela experiência de vida.

Não tenho queixas da minha vida. Participei ou testemunhei tudo o que a segunda metade do século XX me ofereceu. Cobri duas guerras, dei duas vezes a volta ao mundo, fui reconhecido aqui e na Itália. Vi o fim do apartheid na África do Sul e o massacre de Ruanda. Testemunhei o fim do franquismo e do salazarismo. A queda do Muro de Berlim. A eleição de um negro na presidência dos Estados Unidos e de dois líderes sindicais, Lula e Walesa, à presidência do Brasil e da Polônia. Vi o fim do militarismo na América do Sul e a assunção de dois ex-presos políticos, torturados e vilipendiados, assumirem o comando de suas nações. Refiro-me ao presidente Mujica, no Uruguay e a presidente Dilma, no Brasil.

Como toda a minha geração, migrei da calandra e do linotipo para o jornalismo on-line. Não tenho vergonha em dizer que, de todas as revoluções ou tentativas de revolucionar o comportamento humano, a única irreversível e efetiva que testemunhei é a digital. Para o bem e para o mal.

Entretanto, é preciso reconhecer que a minha filha Nina, do alto de seus 13 anos, tem lá sua razão quando me qualifica como old-fashioned. E embora ela não saiba, ou não queira saber, isso é tanto verdade quando se compara a minha coragem e o meu desprendimento com o do avo. Ele sim, um valente, jovem e desprendido.

Italianos no front austríaco: o velho Nunzio esteve aqui aos 15 anos

Pois em 1909, aos oito anos de idade, caçula de 16 irmãos, fugiu da sua Sicilia natal com dois irmãos para o Piemonte, onde abrigou-se em um colégio salesiano. Aos 15 anos alistou-se como soldado para lutar no Friulli contra os invasores austríacos. Hábil nos esquis e na deslocação no meio da neve, foi alvejado quando portava informação relevante que nortearia a célebre Retirada de Trieste. Recuperado, voltou ao front e participou do avanço do rio do Pó até as colinas de Udine.

Com o fim da primeira guerra, aos 17 anos, perambulou entre o Norte da Itália, a França e a Suiça. Sabe Deus fazendo o quê.  Até que numa manhã de agosto de 1924, no cais de Gênova viu que o destino dos três irmãos, que haviam sobrevivido juntos até aquele momento, iria se separar. Salvatore, o mais velho, queria ir para os Estados Unidos. Genaro queria ir para a Argentina.

Ao final, embarcou com Genaro no vapor Giulio Cesare, com destino a Buenos Aires, com uma passagem que lhe dava direito apenas a respirar no porão do navio.
O vapor Giulio Cesare: na linha Genova-Santos-Buenos Aires

Foi uma viagem difícil, o mar estava agitado. Ele sentiu fome e se alimentou apenas da solidariedade dos companheiros de porão. Famílias inteiras que vinham para trabalhar no café no Brasil ou no comércio portenho.

Quando o Giulio Cesare lançou ferros no cais de Santos, o porto estava militarmente ocupado. Era a revolução legalista de Isidoro Lopes. Indiferentes as intempéries políticas, os imigrantes desciam em busca de seu sonho, quando um soldado provavelmente impaciente por não se fazer entender, apressou os passos de um velho camponês vêneto lançando-o ao chão com a coronha do fuzil.

Estava armada a confusão. O velho Nunzio pulou do tombadilho direto na garganta do soldado. Ao final, todo mundo foi levado às autoridades. Quando ele voltou o Giulio Cesare já estava ao largo do canal de Bertioga rumo a Buenos Aires. Genaro, seu irmão, permanecera a bordo.

Só, sem falar uma palavra de português, o velho Nunzio sobreviveu por conta de alguns trabalhos de estiva, enquanto imaginava tomar um próximo vapor que o levaria a capital portenha e ao encontro do irmão. Alguns dias depois, aproveitou a companhia de uma leva de estivadores que pretendia passar o final da semana em São Paulo. Tomou o trem da SPR (São Paulo Railway) subiu a Serra do Mar e desceu na estação do Brás. Era setembro de 1924, a revolução legalista já tinha ido para o ralo. O italiano era a língua corrente no Largo da Concórdia. O jovem Nunzio só iria nascer 28 anos e muitas histórias depois.

O velho Nunzio mudou a vida de centenas de trabalhadores imigrantes, gerou emprego, deu condições de moradia e sustentação. Fez greve, apoiou a nova legislação getulista. Em 1942 pegou outro vapor, desceu em Dacar e atravessou o Sahaara a pé e cruzou clandestino o Mediterrâneo para ajudar os aliados a desembarcarem na Sicilia. Depois juntou-se aos partisans para combater os nazistas no Norte.

Voltou. Fez fortuna e perdeu. Fez de novo, perdeu de novo. Aos domingos de manhã, me levava a visitar seus “lavoratori”, como dizia, nos cortiços da Mooca, e distribuía pães, as vezes frangos, que comprava em caixas, vivos. Criou-me em uma fábrica, onde eu era o “bambino de fuogo”, por conta dos meus cabelos então vermelhos. Junto do cheiro do suor dos operários, das faíscas das soldas e do som das prensas eu aprendi minha primeira lição: ou vamos todos para o paraíso, ou dane-se o paraíso.

Deixou-se uma herança difícil, as vezes pesada. Mostrou-me o lado certo das coisas, deu-me um coração para bater e uma causa por lutar.

É Nina, você tem razão, eu sou o velho Nunzio. O jovem Nunzio é o nonno!

A São Paulo dos anos 20: o Brás todo falava italiano

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