sábado, 5 de novembro de 2011

Merlin e o acanhamento de Anton Bruckner

Anton Bruckner: genial e acanhado compositor austríaco


Merlin: exibido e poderoso bruxo e articulador político







Ando me movendo nos últimos dias entre a saborosa história de Anton Bruckner ( 1824-1896)         o genial compositor austríaco, que teve uma vida ultra discreta, e que debalde tenha reinventado o gênero sinfônico, só foi reconhecido na segunda metade do século xx, e a figura de um dos meus alter-egos, o pretensioso bruxo de Avalon, o mago Merlin, da lenda do rei Arthur.

Bruckner sempre foi um dos meus compositores prediletos. A quarta, a sétima e, sobretudo, a nona sinfonia estão entre as obras que eu mais escuto e que me servem, não raro, de inspiração, de consolo e de estímulo. Estou me divertindo muito lendo um pequeno livro chamado “O Menestrel de Deus”, de Lauro Machado Coelho, que trata das agruras do compositor, dos limites de sua ambição e do provincianismo de um músico de igreja do Interior da Áustria.

Como Beethoven, Bruckner era só. Tinha poucos amigos. Vivia enfunado em uma igreja de Linz. Não tinha uma Bem Amada Imortal, nem era celebrado em vida como um gênio irascível. Não tinha uma vida política, nem teve o privilégio do gênio de Bonn, de conhecer Schiller e Goethe. Tinha aversão ao teatro, mas contraditoriamente era obcecado pela obra de Richard Wagner, a quem idolatrava não tanto pelas gigantescas montagens operísticas, mas pelos acordes corajosos e pela forma sublime com que trabalhava as massas corais.

Bruckner não deixou discípulos. Ficou esquecido por muito tempo. Mais de 50 anos depois da sua morte. Encomendei na Alemanha uma coleção completa das suas sinfonias, gravação única do maestro Eugen Jochum, com a Staatskapelle de Dresden, gravada no início dos anos 60. Deve chegar nos próximos dias.

Mas, ao som da sua nona, na portentosa versão que eu tenho com Bruno Walter e a Filarmônica de Nova York, ando revisitando a figura do mago Merlin e seus dilemas. É incrível como a lenda do rei Arthur encerra uma lição política, como se fosse um prólogo para “O Príncipe”, de Maquiavel, escrito séculos depois, em pleno Renascimento, em Florença.

Merlin buscava um bom príncipe. Alguém que fosse capaz de unir o reino da Britânia e se sobrepor a um bando de senhores feudais, egoístas e cruéis. Ao mesmo tempo, queria confrontar os ritos ancestrais primitivos do povo. Por isso, sua primeira opção foi o rei Uther, filho do sanguinário rei Constant, o primeiro cristão a tentar comandar aquele conjunto de ilhas no Mar do Norte, e que acabou decepado pelo rei Vortinger,  em meio a sequência de embates civis que animavam os governantes.

Excalibur: presente da Dama do Lago tornou-se o símbolo do poder de Avalon




Merlin recebera uma espada cantante da Dama do Lago, a Excalibur, e com ela ajudou Uther a tomar o poder. Ato contínuo o imbecil do Uther lançou o país em nova guerra civil cujo único objetivo era possuir Igraine, mulher do cavaleiro Cornwall.

Afoito, Merlin ajuda Uther, na vã ilusão de que consumado o adultério, acabaria com a mortandade. Com o poder da magia, empresta a Uther as feições de Cornwall.  O adultério acaba com um banho de sangue. Mas, Igraine fica grávida e deste episódio nasce Arthur.

Até para compensar a besteira que havia feito, Merlin prepara Arthur para ser o grande rei que foi. Construir Avalon e o sistema democrático da Távola Redonda, onde todos os senhores feudais tinham assento e voz.

Ia tudo muito bem, até que Arthur meteu na cabeça que precisava largar tudo e sair em busca do cálice do Santo Graal. Como se sabe o tal cálice com que José de Arimatéia teria colhido o sangue de Cristo na cruz. Acreditava-se naquela época, no século XII, que depois dos célebres episódios na Palestina, o bom Arimatéia teria migrado para as ilhas britânicas.

Por que diabos a tal busca do cálice era tão importante? Nunca saberemos. Merlin ficou novamente em pânico. Sabe-se lá quanto tempo Arthur ficaria peregrinando em busca do tal artefato sagrado. E, claro, o equilíbrio político do reino e a távola redonda iriam para o brejo.

Claramente angustiado, Merlin procurou novamente a Dama do Lago, que lhe indicou uma ilha onde ele poderia encontrar um cavaleiro audaz e honesto, um homem de coração puro, capaz de substituir Arthur e manter intacto o reino de Avalon.

Merlin aportou em Joyous Guard adormecido e foi despertado por um menino, que o levou ao seu pai, o vistoso cavaleiro Lancelot, que encantou os seus olhos. Introduzido na Távola Redonda, ele seduziu a todos e tornou-se fraterno de Arthur. Os planos de mago estavam dando certo, não fosse por um singelo detalhe. Lancelot se apaixonou por Guinevere e foi correspondido.

Quando Arthur voltou, não quis acreditar nos rumores, até que ele mesmo surpreendeu os dois dormindo nus na floresta. Elegante como convém a um rei britânico, limitou-se a fincar a espada entre eles, o que horrorizou os amantes quando despertaram.

Ainda que ferido no seu coração, Arthur permitiu que Guinevere e Lancelot, a quem amava, se escafedessem de Avalon. Mas, não conseguiu impedir a Guerra Civil que se seguiria, motivada por seu filho incestuoso Mordred (nascido de uma de suas aventuras com ninguém menos que sua meia-irmã Morgana) que queria o trono.

Um dos argumentos de Mordred era justamente a fraqueza de Arthur ao permitir que o casal de pombinhos fugisse.

Merlin pagou o pato. Até porque fora ele que introduzira Lancelot na Távola Redonda. Os cavaleiros exigiram de Arthur que ele fosse banido. Desconsolado, o mago voltou a Dama do Lago e cobrou-lhe a solução equivocada que resultou em toda aquela desgraça.

- Mas, eu apontei-lhe a solução. Lancelot? Quem foi que falou em Lancelot?

E Merlin se deu conta que havia cometido um erro. Era o menino, Galahad, e não seu pai.

- Não se amargure Merlin – confortou-lhe a Dama. Afinal, você é meio humano e também comete erros.

Arthur morreu ferido por um morimbundo Mordred na Guerra Civil. Seu corpo foi levado pelas ninfas do Lago. Avalon desapareceu. A Távola Redonda foi destruída. Os ritos ancestrais foram esquecidos. O país viveu por mais uma década na escuridão. Até que Galahad reapareceu com o Graal e restabeleceu o reino.

Uma lição política e tanto. A exuberância do Merlin e o acanhamento de Anton Bruckner se confrontam na minha mente. Não sei se Bruckner queria uma vida como a de seus contemporâneos Liszt e Berlioz, verdadeiros deuses durante a sua carreira, ou conturbada como a Richard Wagner. O campônio austríaco ao que parece se conformou apenas em levar uma vida exaltando o Todo-Poderoso, a quem dedicou todas as suas obras.

Merlin, por outro lado, desapareceu mesmo. Uma versão diz que ele viveu seus últimos anos vagando de colônia em colônia contando a sua história para uns poucos camponeses assustados. Ao fazer com que os ritos ancestrais fossem esquecidos, perdeu também o poder de sua magia, que ficou restrito a seu cavalo falante, sir Rupert, que teria morrido com ele.

Felizmente tanto a lenda do rei Arthur como as sinfonias de Bruckner sobrevivem. E são pontos de reflexão em um momento tão difícil como esse. 

Um comentário:

  1. Gostei bastante do seu texto, mestre Nunzio... Li-o como se estivesse me pontuando com o seu discurso articulado. Ficaria contente em poder, dia destes, travar conhecimento contigo... Forte abraço.

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