quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Alemães politicamente incorretos

Cenário de destruição: Alemanha em maio de 1945, nao sobrou pedra sobre pedra.
Não deve ter sido fácil para a humanidade, e mais especificamente para os alemães, absorverem o mundo que emergiu depois da derrota da Alemanha em maio de 1945. Mais do que um bando de fanáticos, lunáticos, malucos, corruptos, etc, o que caiu em Berlim não foi só um regime, mas tudo o que estava agregado a ele. Fosse na manifestação política, cultural ou artística.
É bem verdade que muita gente mudou de lado com a maior desfaçatez e fez de conta que não aconteceu nada. É o caso do maestro Herbert von Karajan, considerado o menino de ouro do Reich, que mais tarde se transformaria no maior vendedor de discos clássicos da história, titular da Filarmônica de Berlim até morrer.
Mas, haviam aspectos culturais mais arraigados. Ainda recentemente, meu amigo Luiz Massonetto, meu companheiro aqui no MEC e em aventuras gastronômicas, musicais, cinematográficas, me lembrava que um dos compositores mais identificados com o regime do fuhrer era o austríaco Anton Bruckner. Hitler adorava suas sinfonias.
Bruckner: vida marcada pela discrição
Dói imaginar que um músico tão inexpressivo quanto genial, que passou a sua existência nas sombras, como mestre-capela, sem nunca experimentar um sucesso ou uma badalação qualquer, sem freqüentar os círculos culturais da Europa, tenha esta marca. Bruckner era wagneriano juramentado, pangermanista assumido, mas passou toda a sua vida sem uma única polêmica, sem um elogio rasgado, mas era um sinfonista esplêndido.
E o que dizer então da obra extraordinária de Richard Wagner, um sujeitinho metido, para quem os fins justificavam os meios, que levou Ludwig II à loucura até conseguir o dinheiro para construir um templo a sua personalidade, o fantástico teatro de Bayreuth. Anti-semita, prepotente na mesma proporção que genial. Capaz de marcar o ponto zero da dramaturgia lírica.
Recebi pelo correio uma edição da tetralogia, as quatro óperas do ciclo do Anel dos Nibelungos (O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e Crepúsculo dos Deuses) gravada em 1953, em Bayreuth. Sob o comando do excepcional maestro Clemens Krauss estão reunidos ali os principais artistas da cena lírica alemã dos anos 40 e 50, ou seja a turma que ascendeu ao estrelato sobre as bênçãos do regime nazista.
Mais que isso, ou fez que não viu, ou participou ativamente das barbáries cometidas desde 1933. Na essência eles são apenas um recorte de uma nação que se submeteu inteiro, ou quase, a um bando de celerados.
Diabos! A nona sinfonia de Bruckner está entre as minhas prediletas. Mas, era também a predileta de Adolfo Hitler. Nazistas ou não, não posso deixar de dizer que este grupo de artistas que fizeram o Festival de Bayreuth, em 1953, chegou quase à perfeição musical. 
Wagner: polêmico e personalista
O ideário nazista me provoca náuseas, repulsa, mas, não posso negar que considero o Lamento de Wotan, da Valquíria, uma das peças mais impressionantes que eu já ouvi. Tanto dramática quanto musicalmente. Ver um deus poderoso como Wotan impotente, constrangido, obrigado a punir a filha querida, Brunhilde, reduzindo-a a condição de mortal, colocando-a adormecida sobre uma pedra e condenando-a a servir a qualquer mortal que a despertasse.
Wotan se submete aos desígnios de sua mulher Erda. E cede ao apelo derradeiro da filha quando a cerca de fogo e proclama que só o herói entre os heróis poderia despertá-la. O som da trompa proclama o tema do herói Siegfried e o deus todo-poderoso pressente que sua existência, como a de seus pares, inicia a decadência que vai destruí-los.
É claro que Wagner não tinha a menor idéia do que aconteceria na Alemanha no século XX. Muito menos que o seu ordenamento mitológico-teatral pudesse ter o tratamento político-propagandista que o regime nazista lhe emprestou.
A obra de Bruckner, redescoberta pela indústria fonográfica nos anos 70, até porque sinfônica, não padeceu tanto quanto a de seu mestre Richard Wagner. Até porque, não seria a preferência que o marechal Goering tinha por vinhos pinot noir da região da Borgonha, por exemplo, que condenaria ou taxaria líquidos tão preciosos a simples redução de que se tratam de vinhos nazistas. Por favor, não!
O problema de Wagner é que ele mexe com o imaginário. É teatral. Seus personagens se incorporam. Os deuses realmente negociam com os nibelungos o ouro do Reno. O Wahalla é construído pelos gigantes. Siegfried forja a espada. Liberta Brunhilde. Se deixa seduzir pelos vassalos de Hagen e é morto por ele. As chamas da sua pira fúnebre incendiam a morada dos deuses e Brunhilde se lança sobre elas. A saga termina com as ninfas animadas com uma grande inundação recolhendo o anel cunhado com o ouro roubado.
Cada um destes lances foi massacrantemente utilizado pela propaganda nazista. Ora, em maio de 1945 até chucrute era abjeto. Os alemães, entretanto, se agarraram naquilo que mais prezavam e defenderam seus valores com unhas e dentes, mesmo estando justificadamente humilhados: o trabalho, a cultura, incluindo Wagner e Bruckner, e até o futebol. Ficaram divididos por quase 50 anos, mas se ergueram novamente.

   
          

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