sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Rostropovich de pijama e a cantada na diva

Mstlav Rostropovich: um dos maiores cellos do mundo, símbolo da resistência 




É bem verdade que na carreira profissional de um repórter é preciso ter disposição, voluntarismo e muita, mas muita sorte. A história que eu vou contar a seguir tem alguns componentes curiosos e a confluência de talentos jornalísticos que permitiram uma experiência única.

Início de tarde na redação da velha IstoÉ, eu me lamentava pela impossibilidade, naquela segunda-feira, por questões rigorosamente econômicas, de assistir ao primeiro concerto do violoncelista russo Mstislav Rostropovich no Brasil, no Municipal de São Paulo.
Em meio às lamúrias, me aparece o “Considerado”: ninguém menos do que o editor de Cultura da revista, Moacyr Japiassú.

- E você lá entende destas coisas, Considerado? – perguntou o Japi.

- Modestamente, o suficiente para distinguir uma viola da gamba de um violoncelo – respondi.

- Vamos falar com o Mino.

Bem, o frio correu pela espinha. Mas, o máximo que eu podia ouvir era um “nem pensar”, ou “manda este italianinho conformar-se com a sua mediocridade”.

Japi explanou com propriedade sobre a importância de registrar o concerto e mais ainda de fazer um bom perfil do músico soviético.

Mino mexia em uns papéis e concordava com Japi, até que sentenciou:

- Tá certo, Considerado, mas estamos sem repórter para fazer isso.

- O Nunzio está aqui implorando esta pauta.

- Quem? O Nunzio? E ele entende disso?

- Só saberemos se mandarmos ele para lá, não acha?

Mino se dirigiu a mim:

- Nunziotto, você acha que dá conta?

- Tenho certeza que sim.

- Então vai. Mas, pelo espelho aqui você tem três páginas que fecham hoje à noite.

- Hoje? – perguntei.

- É, hoje. E eu faço questão de vir fechar pessoalmente.

Ato contínuo, eu já estava na porta do Hotel Cad’oro na tentativa de quem sabe conseguir uma entrevista com o violoncelista.

Vishnevskaya: a diva que me ajudou
Não havia nenhuma possibilidade. Parecia que a KGB tomava conta do saguão do hotel. Comecei a ficar preocupado. O dia acabava quando eu vejo entrar no saguão ninguém menos que a grande diva russa Galina Vishnevskaya, mulher de Rostropovich.

Joguei minha cartada até de uma forma desengonçada. Me dirigi a ela em italiano e pedi um autógrafo. Enquanto ela assinava no meu bloco de anotações, disse a ela que era um repórter iniciante e que tinha a incumbência impossível de entrevistar o maestro.

Ela me olhou de cima abaixo. Seus olhos negros procuraram os meus. Para fugir do constrangimento eu ainda busquei uma cantada inimaginável.

- Com estes olhos não há mesmo Cavaradossi que resista.

- Ah! Você conhece esta minha gravação de Tosca!

- Como não conheceria? É um dos melhores Vissi D’Arte que eu ouvi na vida.

Galina me empurrou um monte de pacotes, me agarrou pelo braço e me levou ao elevador. Fomos conversando sobre a Floria Tosca que ela acabara de viver, realmente muito boa, até chegar na suíte, onde ela abriu a porta já falando em russo:

- Mischa, você tem que falar com este jovem adorável.

O maestro ficou um pouco perturbado, até porque estava de pijamas. Mas, obedeceu a ordem da esposa, ainda que contrariado.

- Muito bem! O que eu posso fazer para ajudá-lo – disse em um inglês que me soava com sotaque samovariano.

- Maestro, não vou incomodá-lo. Só queria saber se esta abertura cultural do regime soviético que lhe permitiu assumir a Sinfônica Nacional de Washington é mesmo para valer, ou se foi apenas uma operação faz-de-contas.

O rosto de Rostropovich se iluminou ele acomodou-se melhor na cadeira e começamos a falar sobre os rigores do regime sobre compositores como Prokofiev e Shostakovitch, sobre a resistência dos músicos. Sobre como ele, um humilde violoncelista, acabou se tornando símbolo de uma geração que teve seus instrumentos emudecidos por um regime burro que não entendia a expressão contemporânea mágica de uma soberba escola.

Quando nos despedimos, ele ainda me avisou que faria uma grande surpresa no concerto daquela noite.

Prokofiev ao piano e Rostropovich jovem: gênios soviéticos
Municipal cheio, o maestro foi recebido pelo público em pé. E apresentou duas sonatas para violoncelo e piano, uma de Prokofiev e outra de Shostakovitch. Ou seja, ele praticamente escreveu a matéria para mim.

Cheguei na redação, agüentei a gozação porque estava vestido com smoking, e escrevi num estirão. O Considerado estava entretido com outros fechamentos e eu vivia a angústia de que a edição da minha matéria acabasse nas mãos do Mino.

Eis que o mestre entra na redação:

- Noite especial. Nunzio Briguglio de black tie. Vamos ver se a matéria também está a rigor.

Entreguei as laudas com as mãos trêmulas. Mino pegou a indefectível caneta Futura preta e começou a ler.

Ao final pediu que eu me agachasse ao seu lado, passou as mãos nos meus cabelos, e disse:

- Você entende mesmo deste assunto. Bela matéria.

- É, Mino, eu estudei um pouco, sabe? Já tinha ouvido algumas gravações.... – balbuciei.

- Disso eu já sabia, meu caro. Me referia ao fato de que você entende mesmo de reportagem. Leve, agradável, com personalidade e com informação. Parabéns!

Certamente não foi a mais tonitruante reportagem que eu fiz na minha vida. Longe disso. Mas, fiquei muito feliz com o resultado. Até porque não é a qualquer hora que a gente entrevista Rostropovich de pijama e dá uma cantada em Galina Vishnevskaya.


Clique aqui e ouça o concerto nr. 2 para violoncello de Dmitr Shostakovitch executado por Mstlav Rostropovich

Um comentário:

  1. Parabéns Nunzio. Se saiu muito bem com o Rostropovich. Gostaria de ler sua reportagem.
    Muitos sucessos.

    Israel Muniz
    Oboista

    ResponderExcluir