sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Uma onda que parece não ter fim

Porgy o mendigo aleijado de um cortiço na Carolina : personagem descontextualizado


Em termos de ópera, posso dizer que já vi “grandes” ousadias. Algumas bem sucedidas outras nem tanto. A mais insólita certamente foi do tenor italiano Nunzio Todisco, meu xará, em uma récita de Il Trovatore de Verdi, em Lima, no Peru.

Tudo transcorria mais ou menos, sem grandes expectativas, quando, no terceiro ato, um mensageiro avisa a Manrico que a zingara Azucena, sua mãe, estava presa no castelo e seria queimada viva. Verdi escreveu aqui uma das árias mais poderosas e difíceis de toda a sua obra, a célebre Di quella pira...

Todisco não se fez de rogado. Com um gesto interrompeu a orquestra e dirigiu-se ao público:

- Senhoras e senhores, atendendo a muitos pedidos no lugar de Di quella pira vou cantar O sole é mio.

Já vi uma montagem muito bem sucedida e divertida do Barbeiro de Rossini em que Fígaro estava caracterizado como Batman. Vi ainda uma Carmem loura interpretada pela saudosa e linda soprano francesa Francine Arrazou. Vi uma montagem muito interessante do Navio Fantasma, de Richard Wagner, ambientado no Muro de Berlim.


Porgy and Bess: Dueto do segundo ato
Nossa! A lista é enorme. Tive o privilégio de ver ópera até em garagem, nos tempos do Teatro Lírico de Equipe, na Avenida Paes de Barros, na minha Mooca.
Mas, honestamente nunca tinha ouvido falar em interferência nas histórias como se pretende agora na montagem de Porgy and Bess, em cartaz em Cambridge, Massachusetts, que deve chegar a Broadway em dezembro. A diretora Diane Paulus, que ganhou o Tony pela reedição de Hair, e a autora de teatro Suzan-Lori Parks (Pulitzer de teatro por Topdog/underdog) decidiram que a história de Du Bose Heyward, musicada por George Gershwin, com letras de Ira Gershwin, que estreou em 1935 e se constitui numa das mais impressionantes óperas do século XX, não está bem. A maneira de falar dos negros da Carolina do Norte soa falsa ou datada.


Incomoda a dupla o fato de que a história não explica porque Porgy é um mendigo aleijado ou porque Bess é uma viciada. Nas palavras da atriz Audra Mac Donald que vive o personagem de Bess, a ópera conta uma grande história de amor, que eles estariam dando vida. E até um happy ending. Ou seja, a tremenda cena final em que Porgy desesperado pede que virem o carrinho puxado por um bode em direção a Nova York, para onde a tresloucada Bess havia sido levada pelo traficante Spotin Life, e canta a soberba ária I’m on my way, foi para o ralo.

Jesusonabike, como diz uma amiga minha, que barbaridade é essa?


Stephen Sondheim, um dos mais celebrados compositores-letristas da Broadway, não se conteve e escreveu um artigo ao New York Times onde fez uma pergunta rigorosamente inquietante: “Quem disse que há em Porgy and Bess uma história de amor oculta precisando que um grupo de visionárias lhe dê vida?”


Bom diante de tanta imbecilidade, modestamente, eu tenho algumas sugestões:

  1. O clássico de Sófocles, Édipo Rei, poderia ser ambientado na Califórnia. E no final, nada de olhos perfurados. Jocasta e Édipo fugiriam para Acapulco e viveriam felizes para sempre.
  2. A célebre história de Tolstoi, que se tornou uma das óperas mais marcantes do final do século XX, Boris Goudonov, poderia ganhar cores mais realistas no regime soviético. Bastaria colocar um bigodão no tzar, transformar os boyardos em comissários do Soviet Supremo e, no final, a la Gorbatchov, pressionado pelo falso príncipe Dimitr, ele convocaria uma assembléia constituinte. Nada de morte ou de fazer o pretendente desmascarado saltar das torres do Kremlim.
  3. O musical West Side Story, de Leonard Bernstein, também precisa ser atualizado. Nada de guerra entre as gangs. Jets e Jaws criariam uma torcida organizada do New York Mets.
  4. O Wozzeck, de Alban Berg, também deveria ser reescrito. Nada do barbeiro ensandecido matar a mulher ao som de um piano desafinado. Para se vingar da traição, ele seduziria o tambor-mor do regimento, os dois abandonariam a mulher e se alistariam como voluntários no exército holandês.
Os irmãos Gershwin: reescritos para a Broadway

Prezadas Suzan e Diane: por que vocês não usam o talento que possuem para escrever algo novo. Mexer na história de Porgy and Bess com a pretensão de torná-la mais comercial e politicamente correta para a Broadway pode incluí-las no rol da infâmia.

Poucas óperas em toda a vasta história dos dramas líricos são tão perfeitamente bem constituída. Algumas canções como Summertime ou Strawberry Woman ganharam vida fora dos palcos. Ela é toda genial, a cena é genial, a música é genial, as letras são geniais, a história é genial, de tal maneira que mesmo cantada em um pretenso inglês falado nos cortiços da Carolina do Norte ganhou o mundo. Basta lembrar que o primeiro e mais famoso Porgy, foi o grande Paul Robenson, um dos maiores barítonos negros de todos os tempos.

Será possível que esta onda de mediocridade não tem fim, nem limite?


click aqui para ouvir excertos de Porgy and Bess pela Opera de Los Angeles.


  

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