domingo, 30 de outubro de 2011

De que lado Deus está?

Nolte e Cassidy em Under Fire: o dilema de tirar uma foto que mudaria a história






Em um filme que ganhou grande polêmica no meio jornalístico nos anos 80, Under Fire, o diretor Roger Spottiswoode conta a história de um grupo de repórteres que andava pelo mundo cobrindo revoluções e insurreições populares. O ponto nevrálgico é quando um fotógrafo chega a um acampamento dos revolucionários sandinistas em uma selva da Nicarágua e descobre que o líder da revolução, um certo Rafael, havia sido morto em uma emboscada pelo Exército Nacional. O governo do uber corrupto presidente Anastazio Somoza de posse desta informação conseguiria obter dos Estados Unidos novos armamentos, reforçaria as forças de repressão e com isso a ansiada revolução demoraria mais 10 ou 20 anos.

Os comandantes da revolução, por sua vez, apresentam ao fotógrafo a possibilidade de simular uma foto com o cadáver de Rafael, desmentindo os rumores de sua morte. Com isso, o governo não conseguiria as armas e cairia nos próximos dias, dando fim a um regime bárbaro que durava mais de duas gerações.

No filme, o repórter fotográfico, vivido por Nick Nolte,  hesita, mas acaba fazendo a foto. Somoza não consegue as armas. Mais tarde se enrola com a execução sumária de um jornalista americano. E, enfim, a revolução sandinista triunfa, com a fuga de Somoza para Miami.

O filme é uma caricatura fantasiosa do que ocorreu na Revolução Sandinista. Até diverte.Tem Johanna Cassidy, linda como sempre, Jean Louis Trintignant, Gene Hackman e Ed Harris.  Mas seu grande mérito é colocar na cabeça de todo jornalista uma dúvida cruel: que comportamento nós, jornalistas, teríamos diante do mesmo dilema. Bateríamos ou não as fotos simuladas de Rafael?

Esta situação é bastante emblemática. Quantas vezes nos deparamos com fatos que contrariam o nosso desejo, ou até mesmo nossas convicções? Inúmeras.

Quantas vezes sentimos correr nas veias a possibilidade de interferir diretamente na vida de uma pessoa, um grupo de pessoas ou ainda de milhares? E aí? Qual é o comportamento que devemos adotar?

Gol de Ghiggia: e se um fotógrafo tirasse para a linha de fundo?



Vamos pensar numa situação hipotética, menos grave. Um fotógrafo que estava atrás do gol de Barbosa naquele célebre final da Copa do Mundo de 1950, no Maracanã. Quando Ghiggia recebe a bola nas costas de Bigode e arma o tiro cruzado que resultaria no segundo gol uruguaio, o jornalista se levanta, se adianta e tira a bola para a linha de fundo.

O árbitro teria que apontar tiro de meta. O Brasil ganharia a Copa. Teria sido evitada a frustração de milhões de brasileiros. E o fotógrafo? Iria para a galeria da glória ou da infâmia?

Hermes, o deus da comunicação, como se sabe, é coxo. Levou uma porrada de Zeus ou quando lhe informou que a deusa Erda o havia traído.

Pobre Hermes apanha sempre! Zeus perdoou Erda. Mas, o boquirroto ficou coxo para sempre. E ninguém nunca se debruçou sobre os dilemas, as angustias de quem, afinal, tem que informar o que está acontecendo.

Na crise dos mísseis em Cuba, o presidente Kennedy manteve o seu porta-voz alheio ao que estava acontecendo, até como uma forma de preservá-lo: “Ele não pode saber. Se ele souber, a imprensa toda saberá” – justificou o comandante americano.

Os publicitários, por sua vez, lidam melhor com isso. Certa vez fui participar de um brain storming numa agência do Rio que cuidava da conta da Pepsi-Cola. Gerei um mal estar danado porque eu não gosto de Pepsi. Gosto de Coca.

Serviram-me Coca. Com um cuidado tão grande que parecia uma operação sigilosa. Poderiam ter me servido só água mineral, sei lá!

Um amigo meu publicitário andava para baixo e para cima em um top line da General Motors montado em São Caetano do Sul. Quando lhe perguntei por que ele não comprava um carro melhor, me respondeu apenas que atendia uma parte da conta da empresa americana. Dias depois perdeu a conta e comprou um importado japonês.

Nós, jornalistas, não conseguimos conviver com isso desta forma. Ainda que fossemos obrigados a escrever laudas e laudas elogiando a Coca e a GM, certamente viveríamos um eterno questionamento sobre a qualidade de ambos os produtos. Em outras palavras, o fato de trabalharmos, por exemplo, no grupo Abril, no Estadão ou nas Organizações Globo e defendermos a linha editorial destes potentados, isso não quer dizer necessariamente que concordamos com ela.

Certa vez uma repórter do Correio Braziliense, que eu só revelo o nome sob tortura, constatou que o programa Bolsa Escola do governador Cristovam Buarque não atingia os resultados pedagógicos que ele apregoava. Como o jornal dava sustentação a ele, a jornalista foi demitida. Competente como é, foi recontratada quando os ventos mudaram no Buriti.

Kaigang: índio não planta. Indio não cria. Caça e colhe.

No final dos anos 70, acompanhei um episódio que marcaria muito a minha vida. A FUNAI queria retomar uma gleba de terras habitada por colonos em uma área que deveria fazer parte da reserva indígena dos kaigangs no município de Laranjeiras do Sul, a meio caminho entre Curitiba e Foz do Iguaçu. A trapalhada havia sido perpetrada por um nada saudoso ex-governador do Paraná, chamado Moisés Lupion.

Esta criatura meiga que governou o Paraná entre 1947 e 1951 e depois novamente entre 1956 e 1961, simplesmente havia loteado uma reserva indígena, assentado colonos por lá. Quase 20 anos depois, a FUNAI, os kaigangs e a Policia Militar praticamente arrancaram as famílias a força, obrigando-as a deixar para trás as melhorias que haviam construído, as lavouras que vicejavam e a criação. Largaram crianças, idosos, homens e mulheres literalmente na estrada. Pouco tempo depois estava tudo destruído, as lavouras dizimadas, a criação perdida e as fazendas abandonadas. Perguntei ao cacique kaigang por que eles tinham feito isso.

- Índio não planta. Índio não cria. Índio caça e colhe.

Registrei tudo e escrevi uma grande reportagem. Uma colega que leu me questionou diretamente:

- Você vai publicar isso? É contra a causa indígena.

Publiquei.

Outro dilema dos jornalistas tem a ver com a questão de que matérias que informam ações de políticas públicas do governo são sempre taxadas de “chapa branca”. Em algumas redações, a maioria eu diria, em dúvida, contra. Sempre contra o governo. Afinal, somos um bando de oportunistas tentando sacanear os cidadãos, arrancando-lhes o rico dinheirinho dos impostos e atordoando-os com burocracia e burocratas.

Cá entre nós. E não somos mesmo? O problema é que de uma maneira geral, o Estado é pesado, confuso, complicado. A vida da maioria das pessoas é simples, marcada por uma prática linear. Direta. A gente trabalha, ganha por isso. Compra o que pode e dá aos nossos filhos aquilo que está dentro de nossas posses. Ai vem o governo e complica tudo: isso pode, isso não pode.

O difícil é remar contra a maré. Lutar no front interno do governo contra o lampeduzianismo renitente de que é preciso mudar para que tudo fique do jeito que está. E no front externo, para mostrar que nós somos diferentes.  Às vezes é possível. Outras não.

E o jornalista que é obrigado a extrair uma notícia deste dilema?

Exigir do pobre repórter que além de entender o intrincado dia-a-dia e tenha a capacidade de traduzir em linguagem corrente o que está acontecendo, ele também capte as intenções, é muito difícil. Exige preparo, informações, cultura geral, boa vontade e tempo, coisas que ele invariavelmente não tem.

Daí vem as notícias enviesadas e a conclusão de que tudo não passa de uma conspiração.

E ainda tem esta praga chamada sensacionalismo ou esta tendência maldita de transformar as notícias em entretenimento. Em sua maioria, os jornalistas são honestos. Podem ser confusos, atrapalhados e mal informados.

Diante do dilema de tirar ou não tirar a foto falsa do Rafael, os militares cumpririam ordens, os advogados analisariam se isso interessava a causa do seu cliente, os políticos tratariam de tirar proveito, os publicitários avaliariam a possibilidade de associar tal problema a uma campanha publicitária ou ainda como poderiam se promover com isso e os jornalistas hesitariam.

Não é pouco.

Blumentritt: decepção com a posição de Deus

Ter consciência de que há um lado certo e de que se está rigorosamente nele é muito, mas muito complicado. Nos momentos que se seguiram a invasão aliada na Normandia, em 6 de junho de 1944, o general Gunther Blumentritt, ordenança do marechal Von Runsteadt, comandante das tropas de ocupação, entrou em desespero quando soube que Hitler dormia e que ninguém tinha coragem de acordá-lo. “As vezes eu me pergunto de que lado Deus está”.

A história mostraria mais tarde que, certamente, não estava do lado dos alemães. Blumentritt era um general da Wermacht, acreditava que os alemães haviam recebido de Deus a missão divina de dominar o mundo. Provavelmente sofreu muito ao descobrir que as coisas não eram bem assim e acabou no tribunal de Nuremberg.

Exigir de um repórter que ele saiba de pronto de que lado Deus está, o tempo todo, é exigir demais.

Enfim, eu tiraria a foto do Rafael, não tenho dúvidas disso. Mas, passaria o resto da vida diante da dúvida se, afinal, havia tomado a atitude certa.  

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