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Aida, primeira montagem desta gestão: participação de todos os corpos estáveis |
Gosto de música desde que me conheço por gente. Aos seis
anos debutei no Theatro Municipal numa matiné de Rigoletto. Acho que minhas
duas primeiras paixões foram o futebol e os concertos matinais que ocupavam as
manhãs dominicais.
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Não tive a sorte de me dedicar a um instrumento, embora
tenha dedilhado um piano e aprendido a ler uma partitura. Desta forma, decidi
investir na capacidade de ouvir, de distinguir intérpretes, de analisar
execuções. Por conta própria estudei um pouco de regência, história da música,
harmonia, solfejo e fraseologia.
Este conhecimento me permitiu, por exemplo, perceber que
Milton Nascimento é um compositor complexo. Não é qualquer cantor ou cantora
que se aventura nas suas canções. Que Cauby Peixoto era um monstro de um
cantor, capaz de transitar tranquilamente entre Conceição e Irving Berlin, ou
Cole Porter. Que algumas canções de Chico Buarque, notadamente aquelas
compostas para o teatro, tinham a estrutura de um musical, para não dizer de
uma ópera.
E, claro! Meu ouvido educado permitiu distinguir a
Filarmônica de Viena da Banda da Guarda Civil Metropolitana de Osasco.
Nada contra nada. Adoro, por exemplo, ouvir um cantor de
cantina se esgoelando com o Sole Mio ou com Por una Cabeza. Cansei de ouvir o
Champagne per brindare un incontro, na voz do Giovanni Bruno (Ah! Que
saudades!).
Na minha juventude frequentei muito o Teatro Lírico de
Equipe, que às vezes se apresentava numa garagem com cantores amadores, outras
tantas no Teatro Arthur de Azevedo, com high lights de grandes óperas
acompanhadas apenas por piano. Era um prazer inenarrável ouvir um mecânico de
automóvel se transformar no Conde de Luna, ou a gostosinha do bairro em Mimi.
Guiado por mestres fui levado a conhecer os grandes templos
da ópera e das orquestras sinfônicas. Primeiro em gravações e depois, graças a
minha profissão e a sorte de ter percorrido as principais cidades do mundo,
presencialmente.
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Falstaff: montagem criativa de alto nível artístico |
Sempre soube que o maestro John Neschling é genial e genioso. E que entre suas
maiores qualidades está a capacidade, só conferida aos gigantes mitológicos, de
transformar um conjunto musical numa orquestra sinfônica. Não afeito às
pachecadas ou aos lances midiáticos, ele é rigoroso ao extremo. Vive da música
e para a música e assim construiu uma carreira que o transformou no século XXI
em um dos maiores regentes do planeta.
Transformar o Theatro
Municipal em uma casa de ópera e, eventualmente, de concertos em padrões
internacionais, é uma destas missões que se confia a uma personalidade como Neschling.
Ainda me lembro da execução dos interlúdios orquestrais do
Peter Grimes, de Benjamin Britten, nos primeiros concertos, em 2013. Poucos minutos
antes da apresentação, o prefeito me questionou porque eu estava tão aflito. Na
verdade, suava frio, tinha as mãos constritas, o batimento cardíaco acelerado.
Era um divisor de águas. Depois daquela noite, pensava eu, nada mais voltaria a
ser como antes. E não foi.
Começamos a produzir em série: Aida, Falstaff, Il Trovatore,
Salomé, Carmem, Tosca, Eugen Oneguin, D.Giovanni, Lohengrin, entre outras.
Fora do poço, a série completa das sinfonias de Mahler.
Faltam apenas a 7ª e a 8ª. O Tríptico Romano de Respighi com a Fura del Bauls,
As Quatro Últimas Canções de Strauss. Foram três anos de realizações que
levaram o casarão de Ramos de Azevedo a figurar entre os maiores teatros do
mundo, literalmente.
Sonhar era permitido: D.Carlos, Boris Goudonov, Contos de
Hoffmann, Parsifal, Peter Grimes, o Tríptico de Puccini, La Fanciulla del West,
Der Freischutz, O Cavaleiro da Rosa. A série integral das sinfonias de
Bruckner. O Réquiem de Guerra, de Britten, quem sabe as duas sinfonias de
Elgar. Com os corpos estáveis celetizados, o céu era o limite.
Mas, forças estranhas se articularam em uma espantosa
velocidade para punir os sonhadores. Apoiados em um modelo jurídico ultrapassado,
perpetraram descaradamente um assalto aos recursos do Theatro. Não se sabe
ainda ao certo, se 10, 12 ou 15 milhões, em três anos. Mas, se sabe quem são os
autores. Estão às portas do cárcere. Pelo menos eu espero.
Na ânsia de se livrar da cadeia e do fato de que foram pegos
com a boca na botija, jogaram lama em pessoas honradas, que sonhavam com o
melhor para a cidade e que vibravam a cada acorde e a cada ária.
Pior. Reabriram as portas para um debate oportunista. Se
agora era a hora de discutir o aprimoramento do modelo jurídico, valendo-se inclusive do bem sucedido da exemplo da OSESP , preferem questionar a via artística. Exatamente o que
deu e está dando certo.
Com base em um democratismo ultrapassado, querem
rebaixar tudo a um nível primário e devolver o Theatro à mediocridade de antes.
Quem sabe com concertos de funk ou rap, apresentação de corais de igrejas,
bandas militares, formaturas e assim por diante.
Nada contra estas atividades. A Prefeitura dispõe de uma
dezena de teatros municipais para este fim.
Também não tenho nada contra a formação de conselhos
artísticos, de administração ou do que quer que seja, desde que seus membros
saibam com o que estão lidando. Um especialista em artes plásticas, não
necessariamente entende de Robert Schumann, ou de Claude Debussy. Um
carnavalesco não entende de uma montagem de ópera. Um diretor de cinema pode
muito bem aprender, mas sua habilidade com uma câmara não é suficiente para que
ele entenda de balé.
Adoraria que a nossa orquestra tivesse a maturidade e a
experiência da Filarmônica de Viena, que escolhe ela mesma os regentes que a
dirigem. Ou a Concertgebown de Amsterdam, cujos músicos participam da sua
programação artística. Quem sabe um dia a gente chega lá.
Por enquanto, é fundamental termos uma direção autoral, assessorada e
fiscalizada. Um deus no céu e um regente no podium.
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Neschling: um dos dez maiores regentes em todo o mundo |
E este regente tem de ser o melhor. Ter experiência. Formar
músicos e cantores. Ser distinguido em todo o mundo. Atrair público de toda a
parte. Desenvolver uma programação específica para formar plateias, sem
rebaixar o nível artístico. Oferecer o melhor. É o que temos com Neschling.
Deve ser apoiado por uma política de marketing que
desenvolva o orgulho da população em ter um teatro de ponta, reconhecido
internacionalmente, com história e excelência. Possa angariar apoios
financeiros que assegurem sua independência e não onerem o poder público. Foi
assim que as maiores orquestras americanas foram criadas. Foi assim que as
principais orquestras europeias passaram pelo horror da segunda guerra e
ressurgiram.
São Paulo se orgulha muito da sua vida cultural. E tem razão
para isso. Pode ser também um dos maiores centros de difusão de música clássica
e ópera em todo o planeta. Para isso, basta levar a sério e aprimorar o bem
sucedido projeto que está em execução. Os teatros de ópera e de concerto de
todo o país foram dizimados pelo voluntarismo de uma meia dúzia de
“entendidos”. Não vamos, nós também, cometer este mesmo erro.