terça-feira, 28 de setembro de 2010

A conquista de uma fonte muito importante


Janio Quadros e Tancredo Neves: encontro de duas raposas políticas no Jardim Acapulco
 Aprendi desde que comecei minha carreira de jornalista, no longínquo maio de 1971, que a maioria dos políticos são seres que não tem nenhum senso de ridículo e nenhum compromisso a não ser com a própria sobrevivência.
Das minhas experiências com figuras mitológicas da política uma foi bastante marcante: o ex-presidente Jânio da Silva Quadros. Diante da perspectiva de sua volta à política nacional em 1981, Mino Carta me conferiu sobre olhares perplexos da redação (que tinha jornalistas muito mais competentes que eu para este assunto) a missão de reportar a sua volta.
E lá fui eu, Serra do Mar abaixo, até o Jardim Acapulco para uma entrevista com o mitológico homem da Vassoura, da renúncia, do “fi-lo porque qui-lo”. Naquele tempo não tinha nem internet, nem Google. Um amigo havia me preparado um dossiê de matérias publicadas pelo Estadão, que ele havia surrupiado do velho arquivo.
Não eram nem 10 da manhã quando eu soei a campainha. Uma simpática, mas muito simpática, dona Eloá me atendeu com um sorriso generoso e uma pergunta indiscreta:
- Você já tomou café da manhã? Aguarde um pouquinho que o Jânio já vem.
Momentos depois, deslocado para uma biblioteca impressionante, assisti a entrada do mito, acompanhado por meia dúzia de cães, a maioria vira-latas, onde despontava Pipoca, a preferida.
- Muito bem, meu jovem, no que eu posso ajudá-lo?
- Presidente fui encarregado de reportar a sua volta à política.
Foi assim que eu comecei uma entrevista que durou nada menos do que oito horas, devidamente interrompidas pelo almoço e por vários telefonemas. Jânio respondia minhas perguntas com respostas curtas e enfáticas, mas depois me contava histórias e histórias para ilustrar. Não raro se valia dos arquivos para confirmar com fotos e pequenos objetos, citações em obras da biblioteca.
Me lembro de algumas frases dele que jamais esquecerei. Diante da pergunta se iria disputar as próximas eleições saiu-se com essa:
- Disputar uma eleição é sempre bom. Se vencer, melhor ainda!
Jânio tinha admiração por Tancredo Neves e por Ulysses Guimarães. E notável ojeriza por Montoro. Falava de Mário Covas com carinho e do general Golbery com respeito. Sobre Lula preconizava um calvário para o então metalúrgico. Mas argüia que em um cenário político onde não se sabia quem representava quem ou o que, ele, pelo menos sabia de que lado estava.
Subi a Anchieta confesso que perturbado com a lucidez com que ele havia me apresentado o quadro político. Fui direto para a redação e contei para um atento Mino Carta os conceitos que ele havia me exposto.
Mino me mandou para casa e recomendou:
- Venha cedo amanhã, levante o material que você gravou e vamos fechar durante a noite.
Assim eu fiz. E escrevi muito. Muito mesmo. Coisa de 800 linhas, 40 laudas ou, se preferirem 60 mil caracteres. Naquele tempo, o fechamento se prolongava noite à dentro. Já eram duas da manhã e eu estava com a reportagem escrita à espera do chamado do Mino para fechar.
A redação da Istoé naquele tempo funcionava no começo da rua da Consolação e para minha mais absoluta surpresa, o elevador se abre e dele sai ninguém menos que o próprio Jânio, vestindo um palitó surrado de tweed e um imenso cachecol. Ou não me viu, ou não quis me cumprimentar, foi direto para o aquário do Mino.
Fiquei no meu canto, no fundo da redação absolutamente só com os meus botões. Ainda olhei de relance para meu colega e amigo José Meirelles Passos, que limitou-se a balançar a cabeça negativamente.
De repente irrompe o Mino do aquário com o Jânio atrás.
- Nunzio, o presidente me pediu para ler a sua reportagem. Disse a ele que esse não é um comportamento padrão, que eu ainda não li, mas que a decisão é sua.
A redação parou. A impressão que eu tinha era de que o mundo estava parado. Que diabos eu ia fazer?
Peguei a reportagem e um lápis e ofereci ao ex-presidente, que não se intimidou pegou uma cadeira e sentou-se à minha frente. Lia freneticamente, aqui e ali fazia marcações na margem das laudas. Não emitiu um som sequer, mas desfilou uma série infindável de cacoetes, desde mexer o pescoço como se o cachecol estivesse o enforcando, até tentar encostar a cabeça no ombro esquerdo.
Quando estava para concluir, o Mino voltou e ficou em pé ao seu lado, como se quisesse partilhar o veredicto:
- Mino, esta reportagem está cheia de ironias, algumas até mordazes, é bastante crítica a minha pessoa, mas não posso negar que está escrita em bom português.
Jânio me cumprimentou de forma bastante formal e o Mino o levou ao elevador. O sol já brilhava quando o Mino colocou a matéria nas páginas. Saímos juntos e eu dei uma carona para ele. No caminho ele me disse:
- Você se saiu muito bem. Foi elegante e generoso e a matéria não estava mal.
Voltei várias vezes ao Jardim Acapulco. Numa delas foi para cobrir a visita de Tancredo Neves. Estava acompanhado de um dos meus parceiros mais queridos, o então repórter fotográfico Hélio Campos Mello. Ele registrou o encontro e outro dia mexendo nos seus arquivos encontrou a foto que ilustra este post.
Jânio ainda iria dar muita dor de cabeça a muita gente. Fernando Henrique que o diga. Mas, naquela madrugada inesquecível, ele não ganhou o meu voto, ganhou meu respeito. E eu ganhei uma fonte, que nunca me faltou.

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