quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Uma dupla afinada em uma aventura amazônica

Eu, João e o cachorro na Cuiabá-Santarém, em 1981; vimos a morte de perto
Uma coisa é absolutamente certa. Qualquer bom jornalista sabe disso. Uma reportagem sem fotos é equivalente a uma loira careca ou a uma cerveja choca.
Por isso mesmo, reportagem, reportagem mesmo, não é fruto de uma única mente privilegiada, se não de duas.
O repórter e o repórter fotográfico têm que funcionar como num dueto, no mesmo ritmo, no mesmo diapasão. Os olhos de um têm que ver o mesmo que os olhos do outro. As palavras tem que se encaixar com as imagens. O editor deve passear pelas letras e pelas imagens com prazer. O leitor se encharca de informações, inclusive visuais, numa harmonia única.
Trabalhei com bons e maus fotógrafos. Nem vou me reportar aos maus. Mas, entre os bons muitos me carregaram nas costas,  outros evoluíram comigo. Tive o privilégio de dividir reportagens com Sebastião Salgado e Jean Noguez, ambos à época discípulos e parceiros de Cartier Bressane na Gamma. Ainda me lembro do enorme Roberto Stuckert e sua Hasselblad 6 x 6 no papel que hoje é de seu filho, o genialíssimo Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial da Presidência da República.
O Stuckão, por mais de uma vez, era a única fonte de informação, isso nos tempos que os milicos dominavam o país. O Ricardo felizmente não precisa fazer o mesmo que o pai.
Trabalhei com repórteres fotográficos de uma sensibilidade incrível: Cláudio Versiani, atleticano fanático que me colocou o apelido que viraria meu knicknome, italianpine; Iara Venanzi, certamente uma das mais caprichosas, detalhista ao extremo. Geyson Magno, autor de um dos trabalhos mais impressionantes que eu já vi: “A civilização do couro”.
A lista é imensa. Mas dois, entre tantos, partilharam comigo os momentos mais marcantes da minha vida profissional: João Bittar e Hélio Campos Mello. Ainda pretendo contar muitas das histórias que eu dividi com eles. Mas, hoje me vem à lembrança uma em especial, que eu vivi com o João em 1981.
Partilhamos uma das reportagens mais emocionantes da minha vida: “Os pioneiros da Nova Fronteira”. Ficamos três meses perambulando pela Amazônia, percorremos por ar, terra e rio, o Norte do Mato Grosso, onde conferimos alguns acampamentos que hoje são cidades pujantes como Sinop e Alta Floresta, o então território de Rondônia, e o Acre. Nosso objetivo era reportar o avanço da fronteira agrícola.
Este episódio começa em Alta Floresta, quando decidimos alugar um avião para nos levar à cidade de Colíder, não sem antes visitar uma fazenda do grupo Ometto, na divisa com o Pará, e uma currutela de garimpeiros na margem do rio Peixoto de Azevedo.
Alugamos o único avião disponível, um Skyland, monomotor de asa alta, veterano da saga dos garimpeiros. O piloto era um cara conhecido como Bigode. E as lendas sobre suas peripécias o comparavam ao Barão Vermelho.
Saímos em um domingo, assim que o sol apontou no horizonte, depois de uma gigantesca carraspana com o padre Benjamin no meretrício local, chamado Saramandaia, e patrocinado pela cafetina Beth Galaxie, senhora todo-poderosa, que desfilava em seu Ford Galaxie 500, todo branco com um motorista negro de luvas brancas, ainda que só houvesse 500 metros de via na cidade. Nos acomodamos no aviãozinho e não sei porque cargas d’água me deu na veneta de provocar o tal Bigode.
- Quer dizer que você é o bom mesmo! Vamos ver se isso é verdade.
Pois foi a decolagem mais espetacular que eu experimentei em toda a minha vida. Na metade da pista de terra, com pouco mais de 500 metros, Bigode embicou o avião em um ângulo de 90 graus. Só tive tempo de ouvir o João gritar:
- Nunzio! Filho da puta!
Sobrevoamos placidamente o gado alvo na fazenda Ometto e mesmo lá de cima notamos que os funcionários já se movimentavam para nos receber. Quando pousamos foi uma festa.
- Ah! Eu bem que avisei. Borboleta na cozinha é visita! – exclamava Margarida, a mulher do capataz que entre outras tarefas era também a professora da fazenda.
Foi uma manhã e uma parte da tarde muito agradável. Em meio a historias de pastoreio no coração da Amazônia, nos servimos de muito macarrão, pastéis e batida de caju.
Chegou a hora de ir embora. Desta vez me acomodei no banco de trás do aviãozinho. Estava tão desligado que me esqueci do Richtoffen.
Pois desta vez ele decolou e foi para dentro de duas cerejeiras na cabeceira da pista. Metros antes de atingi-las, virou o avião de lado, e passou entre elas. Não satisfeito, retomou o curso e embicou. Era demais!
Desta vez veio o macarrão, o caju e foi tudo para cima do João que estava na minha frente. Simplesmente achei que ele iria me matar, ou na melhor das hipóteses nunca mais iria me dirigir a palavra.
Mas, o dia teria ainda muitas, mas muitas emoções. Ao chegarmos a currutela nas margens do rio Peixoto de Azevedo deparamos com uma visão digna de um filme de Werner Herzog. Para quem não sabe, currutela é um local onde os garimpeiros acorrem para vender o ouro, abastecer-se com mantimentos, entre outras coisas.
A moral do garimpo é própria, característica e muito distante do que um ser urbano possa pensar. Por exemplo, constatamos que havia pelo menos uma dezena de manicures.
Garimpeiros têm fixação por manicure. O meretrício claro, com meninas muito jovens. Armazéns improvisados para gêneros fundamentais como querosene e biscoitos. As vielas são estreitas e asfixiantes. E, claro, há um hospital e um improvisado laboratório de análises.
No meio dos garimpeiros grassava – e deve grassar ainda – a malária. De todos os tipos, da mais inofensiva a mais mortal. O hospital estava cheio de pacientes e um médico alemão, que mal falava português, cuidava de todos em troca de algumas pepitas. Pela idade, deduzi que o dr.Hermann (este era o nome dele) deveria estar no vigor se sua juventude entre 1935 e 1945. Ainda tentei arrancar alguma coisa dele, mas o homem se fechou de forma bastante suspeita.
Nem atentamos para o relógio, quando o Bigode fez a última decolagem do dia, em direção a Colíder. Apenas cuidamos, depois do desastre da fazenda, para que fosse uma decolagem o mais tranqüila possível, diante das condições.
O Joao, precavido, desta vez usava uma espécie de capa de chuva para se proteger de eventuais problemas com seu companheiro de viagem.
Conversávamos animadamente sobre a currutela quando percebemos que alguém havia apagado a luz. Exatamente isso, na Amazônia naquela época do ano, aliás, presumo que no ano inteiro, não há crepúsculos longos. O dia simplesmente desaparece como se alguém tirasse o plug da tomada.
- E aí Bigode, como vai ser?
- Não tenho a menor idéia. Não acho a cidade e mesmo se achar, a pista de pouso aqui não tem iluminação.
Já vi a cara desta senhora, a morte, várias vezes. Mas, daquela vez, ela simplesmente se instalara naquele avião. Sentou-se ao nosso lado.
Pânico! Horror! Nada disso. O João acabara de ser pai da Marina. Reagia tranqüilo. Ficamos em um silêncio profundo.
- Vou tentar achar a sombra de uma cerejeira bem grande e meter o avião por entre os seus galhos. A gente vai se machucar, mas temos uma chance de sair dessa.
Uma perna ou um braço quebrado. Talvez um olho perfurado. Algumas costelas trincadas. Fazer o que?
Eis que, mesmo no escuro da cabine, percebemos que os olhos do Bigode se iluminaram. Com as mãos ele nos mostrava um ponto de luz em movimento.
- Apertem os cintos. Estamos salvos!
Nenhum de nós ousou perguntar que salvação era aquela. Bigode manobrou o avião de forma a se alinhar atrás da luz. Vimos que era uma caminhonete velha. Passou por cima dela e pousou delicadamente na estrada à sua frente, amparado apenas pela luz dos seus faróis.
O motorista da caminhonete veio ao nosso encontro de espingarda em riste, tal o susto que tomou. Mas, depois acalmado ainda nos deu uma carona até Colider, que estava bem perto.
Escapamos de boa! Outro dia continuo a contar as aventuras desta reportagem.
A foto postada no alto foi tirada pelo Bigode no dia seguinte, quando fomos ajudá-lo a decolar. Prestem atenção no cachorro....


        

 

3 comentários:

  1. Que história divertida! Só é melhor contada ao vivo, e pelos personagens!

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  2. Que história sensacional!!!
    Aliás, saudade dos tempos em que o bom jornalismo era feito por boas duplas!!!

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