quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Ritsuko, Kurosawa e o Yamato

Ritsuko era uma jovem nissei, sempre alegre e reservada, que pagava caro os olhos puxados, os longos cabelos negros e uma impressionante eficiência nos livros e cadernos do ensino médio. Ela sempre sobrava nas festas e provocava uma reverência respeitosa, quando na verdade, tudo o que ela queria era ser tratada como uma menina igual a qualquer outra.
Confesso que foi um pouco o sentimento de pena que me moveu em direção a ela no final de uma festa na rua do Acre, na velha Mooca, aniversário de alguém, cumprido em uma noite fria e garoenta. Ainda me lembro do casaco espartano que ela usava, mais parecido com uma japona. A saia azul marinho rodada. O sapato e as meias brancas.
Ela morava na rua Guaimbé, no mínimo umas 20 quadras da festa. E naquele tempo, não tinha essa de pai pegar filho em festa, por isso, caminhamos mais de uma hora, a passo de cágado, enquanto discorríamos sobre o conflito dos costumes de uma família italiana, como a minha, e uma família japonesa, como a dela.
O papo foi superanimado. Na segunda-feira à noite, quando as aulas terminaram, não me incomodei em fazer uma longa volta para acompanhá-la até sua casa. E assim foi na terça, na quarta e assim por diante. Até que criei coragem e convidei-a para um cinema no sábado. Ela aceitou de pronto, com uma observação: “Nós sempre vamos ao cinema, a minha família toda, e teremos muito prazer que você nos acompanhe”.
Fiquei um pouco perplexo, mas nesta altura do campeonato, o que poderia acontecer? Na hora aprazada me apresentei, cabelos penteados, aquela surrada blusa de gola godê preta, e um pouco daquele ar rebelde dos anos 60. Quando a família dela finalmente saiu, conclui que não caberíamos todos no velho Perfect (um carro inglês muito popular no Brasil naquele tempo) do pai dela, um japonês elegante, ele usava terno e gravata,  e que me cumprimentou como se eu fosse um poste.
Enquanto a família se deslocava no Perfect nós, eu e Ritsuko, pegamos o velho 26, Praça Clóvis-Parque da Mooca, e descobri perplexo que iríamos ao cinema sim. Mas, ao cine Nippon, no bairro da Liberdade. Quando chegamos Akiko, sua irmã mais nova estava com os ingressos na mão. A família já estava acomodada na sala de projeção e aliás, a sessão já havia começado com a projeção de um telejornal, algo parecido com Notícias do Japão.
Onde eu havia me metido?
Pois quando a projeção do filme começou, me senti como invadido por um estranho sentimento. A fotografia em branco e preto, absurdamente realista, a trilha sonora insistente que apenas pontuava a ação. E a história! Tratava-se de uma aldeia ameaçada por renegados, em meio a guerra civil japonesa do século XVII, e a decisão dos colonos em contratar samurais para defendê-los.
O filme tem três horas e meia. Mas, não consegui desgrudar meus olhos um segundo da tela. No final da história, os renegados destruídos e quatro samurais mortos. Um dos sobreviventes – na verdade um aprendiz de samurai – decide se entregar aos encantos de uma camponesa e os outros dois travam o seguinte diálogo:
- Mais uma vez nos vencemos – diz um deles, o mais jovem.
- Não. Você está enganado. Eles é que venceram – diz isso referindo-se aos camponesas, enquanto a câmara mostra o plantio do arroz, ao som ritmado de um tambor.
Meu Deus! Aquilo para mim era uma novidade impressionante. Mas, a noite me reservava ainda outras surpresas. No caminho de volta, comportadamente sentados no velho 26, Ritsuko ainda me ilustrava sobre a história do Japão, a relação sagrada dos japoneses com a terra e com a agricultura. De quebra me dizia que o diretor daquele filme era um dos mais influentes e competentes diretores japoneses: Akira Kurosawa e que aquele filme, que o ignorante aqui acabara de ver, chamava-se Os Sete Samurais.
Desde aquele sábado passei a freqüentar a casa de Ritsuko. Entabulamos um namoro super-comportado, sem nenhum compromisso. A minha curiosidade e, acreditem, a minha conveniente humildade diante de um mundo novo que se descortinava aos meus olhos, fez com que a família dela tolerasse os meus arroubos mediterrâneos.
Me apaixonei para valer de Ritsuko. Nunca disse isso para ela. Me sentia integrado e protegido por aquela família. Aprendi muito. E mesmo em um tempo em que produtos japoneses eram considerados frágeis, baratos e imprestáveis (como são os chineses e coreanos hoje), seo Kahoro, o pai de Ritsuko, me alertava sobre a capacidade impressionante de trabalho e de pesquisa do povo japonês, muito antes que eu pudesse ler o “Made in Japan”, o célebre livro de Akio Morita, o cara que inventou nada mais nada menos do que a Sony.
Um belo dia Ritsuko me disse que iria estudar no Japão. E a família Abe saiu da minha vida, ao mesmo tempo em que eu estudava como um louco para fazer o exame do Mapofei.
Ainda outro dia, vi Ritsuko na NHL, a tevê estatal japonesa, ela se transformou em uma espécie de Ophra Winney nipônica. Nunca mais voltou ao Brasil. Devo a ela, além de ter descoberto o excelente cinema japonês, o prazer em degustar a sua gastronomia (muito antes de virar moda e alguns imbecis colocarem tomate secchi e cream cheese no sushi), a reverência ao chá e o respeito a um país e uma cultura milenar.
Por que diabos me veio a mente a lembrança doce da Ritsuko?
Por conta de um filme japonês, disponível apenas em DVD, chamado Yamato, produzido em 2005, e que estranhamente ficou longe das salas de exibição e até das tevês a cabo.
Para quem não sabe, Yamato é o nome do maior encouraçado de guerra já construído em todos os tempos. Ele era a nau capitânea da armada japonesa na Segunda Guerra Mundial, deu um trabalhão para os americanos, e foi afundado no dia 7 de abril de 1945, no Mar da China.
Como está na moda filmes que mostram agora também o lado dos derrotados – mérito sobretudo do cinema alemão – imaginei que tratava-se de um destes exemplares.
Definitivamente é muito mais do que isso. Como diria um amigo meu: “Vai contar uma história bem contada assim no inferno!”
O veterano diretor Junya Sato reconstruiu o Yamato em computação gráfica e recriou a batalha que culminou com o seu afundamento com uma precisão impressionante. Mas, o que ele mostra em mais de duas horas de filme é uma sequência de personagens impressionantes, de histórias de vida que transcendem o heroísmo e que agregam uma lição de vida, muito além da derrota militar e do aniquilamento de uma nação.
Tenho amigos que ainda torcem o nariz para peixe cru. Mas, acreditem Yamato é um kai-sec, um banquete. Um filme emocionante, sem ser piegas, e que guarda uma revelação singela ao final, que me reportou o mesmo sentimento que eu havia experimentado quando vi, com as mãos apertadas com Ritsuko, as quatro tumbas da cena final de Sete Samurais.
Temos vivido nos últimos dias momentos de profunda emoção e tensão no nosso dia-a-dia. Estamos diante de um pleito eleitoral que pode marcar indelevelmente a nossa história e que, com certeza, ao seu final vai apontar o caminho para o país que queremos ser no futuro. Os japoneses já sabiam que país queriam um mês antes do Yamato, a última embarcação de guerra da marinha japonesa, soçobrar e repousar no fundo do Mar da China. Esta é mais uma lição que deveríamos, nós brasileiros, aprender com os patrícios da Ritsuko: olhar para o futuro com os pés bem firmes no presente.
        

Um comentário:

  1. Querido Nunzio, adorei! Amei, amei. Uma história incrível. Vou acompanhar as próximas. Beijos!

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