quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A inusitada história das proparoxítonas


Carlos Wilson; pavor pelas proparoxítonas

Com o afundamento do projeto Manchete, no final de 1997, decidi me premiar um projeto sabático. Como eu havia conseguido a proeza de receber até a última moeda todos os direitos trabalhistas dos Bloch, o que nem Geová conseguiria explicar, fui a Itália, depois a Argentina e encarei o verão 97/98 descansando em Ilha Bela.
Por isso mesmo, quando um telefonema do meu amigo Marco Damiani teve a petulância de me despertar de sono profundo na praia dos Franceses, achei que ele era mesmo o que parecia, petulante.
Damiani queria que eu subisse a Serra para conversar com Chico Santa Rita, o célebre marqueteiro, que precisava de um operador de comunicação para uma candidatura em Pernambuco. Foi mais ou menos assim, sem grandes pretensões que eu desembarquei em Recife, naquele janeiro de 1998, para conhecer o então senador Carlos Wilson, ajudá-lo e diagnosticar suas chances na corrida para o Palácio do Campo das Princesas.
Histórias de e com Carlos Wilson tenho dezenas para contar. Mas, esta, sem dúvida, talvez por ter sido ainda a primeira, merece uma certa primazia.
Estava às voltas com os problemas inerentes a organização de um comitê eleitoral, quando o escritório foi tomado de verdadeira comoção. “Sardinha disse que Cali quer um discurso sobre equilíbrio regional!”.
Cali era o apelido do senador. Sardinha, vim a descobrir depois era seu chefe de gabinete, que, na verdade chama-se Fernando Rodrigues, e que por algum motivo, que eu nunca descobri, era apelidado de professor Sardinha.
Como eu imaginei, logo depois, o chefe do escritório, Romeu Baptista, me chamou a sua sala e me consultou sobre minha aptidão para redigir discursos. Mesmo sabendo que não teria maiores dificuldades, preferi usar de uma certa humildade:
- Posso tentar. Você me passa um briefing das idéias do senador sobre o assunto e eu vou tentar concatenar um pronunciamento.
Romeu pensou por um segundo e respondeu:
- Olha, se eu conheço Cali, é melhor você propor um arrazoado de idéias e ele corrigirá o rumo.
Resmunguei que isso seria um pouco complicado, mas como o tema me é caro desde os tempos em que eu freqüentava o apartamento de Rosa Freire, que vem a ser hoje a viúva de ninguém menos que o professor Celso Furtado, em Paris, me senti encorajado a tentar.    
Tomei um copo de água de coco, abri um maço novo de Marlboro, aumentei o ar-condicionado, fechei e tranquei a porta da minha sala, e desatei a batucar freneticamente no computador. Passava da meia-noite quando eu pedi ao computador para me informar o número de caracteres: 14 mil.
Fui para o hotel dormir. Chovia, mas o calor abafado de Recife era imenso. Consegui dormir e viajei nos meus sonhos. Que petulância a minha, escrever um discurso para ser lido da tribuna do Senado Federal! De Júlio César a Paulo Brossard todos pareciam me condenar.
- Medíocre – sentenciava em meus sonhos o senador Pinheiro Machado.
- Desproporcional – dizia o fantasma do senador Bonifácio de Andrada.
Acordei disposto a rever cada palavra e cada conceito. Não havia ninguém no escritório quando eu cheguei, um pouco antes das oito horas.
Li e reli à exaustão. As 11 horas, Romeu chegou e me pediu o texto, em duas versões: papel e digital.
Passei e sai para almoçar. Lembro-me que fui a Ilha do Leite dividir uma perna de cabrito com meu irmão Ivanildo Sampaio, então e até hoje, editor do Jornal do Commercio.
Quando voltei, pelas 15, o escritório vivia um tumulto sem igual. Pelos corredores ouviam-se sussurros: “O discurso, o discurso...”
Meu Deus! O que será que eu provoquei.
Procurei o Lula, Luís Farias, que fazia as vezes de assessor de imprensa, e ele disparou nervoso, em meio a leitura de várias publicações que estavam abertas em sua mesa:
- Cali não gostou. Cali não gostou!
- Mas, não gostou do que? – retruquei.
- Não gostou italiano. Não gostou!
- Mas, não gostou do conteúdo, do estilo...
- E eu sei lá! Não gostou e pronto.
Senti-me o último dos seres na Terra. Certamente acostumado a grandes pronunciamentos da tribuna do Senado, Cali esperava um discurso a la Paulo Brossard, e eu pobre mortal nem pala no ombro tinha.
Finalmente Romeu chegou e imediatamente acorri para sua sala, disputando o batente da porta com o velho Lula. Quase que entramos ao mesmo tempo.
- E aí Romeu, o quê que Cali não gostou?
Romeu Baptista é um lord. A admiração que tenho por ele até hoje, e imagino que seja recíproca, vem do conforto e da segurança de suas opiniões. Ele tomou um certo ar de seriedade e com voz baixa respondeu.
- É que Cali acha que o texto tem muitas palavras proparoxítonas.
A sentença me fulminou como um raio.
- Como assim?
- Cali não gosta de palavras proparoxítonas, explicou o bom Romeu com ar paternal.
Voltei perplexo para a minha sala. Como alguém poderia gostar ou não das palavras de acordo com a sua acentuação? Gosto de paroxítonas e de oxítonas. Não gosto de proparoxítonas. Isso existe?
Peguei um lápis delineador e comecei a marcar as palavras no texto conforme sua acentuação. Lá pela metade me dei conta do absurdo. Alguém enlouquecera. Todos pareciam enlouquecer. Mas, eu iria resistir.
Voltei para a sala de Romeu com o texto na mão e em tom de súplica desafiei:
- Romeu isso não existe. O senador enlouqueceu.
- Nunzio, ele simplesmente não consegue falar palavras como abduzir, réptil.
E passou a enumerar uma série de palavras...
- Mas, nenhuma destas é proparoxítona.
- Como não? Você já viu alguém falar estas palavras no dia-a-dia?
- Espera aí Romeu, você está me dizendo que palavras proparoxítonas são palavras inusuais e rebuscadas?
- Claro!
Peguei o texto, voltei para a minha sala e pedi alguns minutos. Substitui uma dúzia de palavras e voltei com um novo texto e um novo arquivo.
Romeu sorriu e mandou para Brasília. No dia seguinte ainda vi pela TV Senado um orgulhoso senador desafiar o equilíbrio regional e cobrar (originalmente era reivindicar) do governo federal mais atenção para os estados do Nordeste.
Escrevi mais de uma centena de discursos para Carlos Wilson, até porque depois, no ano 2000, ele me contrataria como seu assessor parlamentar no Senado Federal. Ficamos muito amigos. Aprendi muito com ele. E hoje sinto saudades. Cali foi uma das maiores perdas que sofri nos últimos tempos.
Descansa amigo!

Um comentário:

  1. Conheço os personagens... Posso imaginar o staff do candidato suando sobre o seu discurso, tentando abolir as proparoxítonas para não contrariar o chefe... Pelo jeito Cali também nunca cantarolou "Construção" de Chico Buarque (última, mágico, náufrago, bêbado, flácido, sábado...)

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