terça-feira, 21 de setembro de 2010

O novo que virou poeira

É voz corrente que a arte de presentear alguém consiste em associar a imagem, ou a personalidade, do presenteado a essência do mimo em questão.  Daí, aqueles que me conhecem devem imaginar o orgulho que senti quando minha filha Bianca me deu uma edição de “Um Diário Russo”, escrito por John Steinbeck com fotos de Robert Capa, mais um destes trabalhos que dignificam uma editora como a Cosac & Naify.

Ao rever o trabalho de Steinbeck e Capa me veio à mente um comentário de meu velho companheiro de tantas batalhas, o grande João Bittar, gênio das lentes, ele também um admirador – e como poderia não ser – deste húngaro genial, Capa, que morreu precocemente ao pisar em uma mina no Vietnam.  Sentados em torno de uma xícara de café, numa fria manhã paulistana, com a liberdade de quem partilhou boa parte da minha história jornalística, o João sentenciou: “Italiano, esquece, o jornalismo morreu. Pelo menos aquele que nós aprendemos a fazer com garra e coragem, não existe mais”.

Foi uma sentença dura e cruel. Ocorreu-me em forma de horror que o trabalho de Steinbeck e Capa, de Capote, de Peter Arnett, de Gay Talese, ou de José Meirelles Passos, de William Waack (sim acreditem ele já foi jornalista de trincheira e dos bons), do Pena Branca, de Hamilton Almeida Filho, de Mário Chimanovitch, de José Hamilton Ribeiro, de Clóvis Rossi (ele também já foi um repórter maiúsculo, proporcional ao seu tamanho), e de tantos outros, tudo isso ganhou as calendas da história. Fósseis de um jornalismo que já foi qualificado como “new” e que agora ganha a poeira das estantes.

João Bittar é pisciano e, portanto, vítima de um pessimismo crônico. Esta batalha, que ele agora dá como perdida, começou há muito tempo. Ed Murrow (“ Boa Noite e Boa Sorte”, disponível em vídeo) já falava na supremacia do entretenimento sobre o jornalismo nos anos 50, quando ele comandava a mãe de todas as equipes de jornalismo televisivo, a CBS News.  É duro reconhecer que aquele trabalho, o primeiro na TV, não caiu pela força política do macarthismo, ou da direita americana, mas sim porque o americano médio não se interessava pela realidade do mundo pós-guerra. “Desta caixa de madeira, o público não quer ver notícias, pelo menos não as notícias aprofundadas que o obriguem a refletir e entender o papel que pode desempenhar. Ele quer a notícia-espetáculo, o show, o entretenimento”. A frase é do próprio Murrow.

Outro dia um destes mitos do jornalismo atual diante da perplexidade de ter que elogiar uma atitude do atual governo saiu-se com essa em uma emissora de rádio: “Olha, não dá para criticar esta postura do governo. Mas, eu sou fiel a um princípio anarquista: Se hay gobierno soy contra! Portanto alguma coisa de errado deve ter”.

Outro mito do jornalismo atual, colunista de uma prestigiosa revista semanal, emprestou seu “conhecimento” para comentar a Copa do Mundo da África, em uma emissora de rádio de São Paulo. Em um primeiro momento tentou mostrar que o técnico Dunga era a contraposição justa ao presidente Lula, por ter aproveitado sua passagem por Florença para estudar e aprender a diferenciar um azeite trufado de um “vulgar” spremutta a freddo, enquanto o retirante de Garanhuns, provavelmente deveria ser um apreciador do azeite Galo.

Dunga e sua arrogância ganharam o destino de Lazaroni. Lula sobreviveu com o azeite português e mais de 80% de aprovação. Talvez este seja o jornalismo destes tempos medíocres. Criticar antes de interpretar ou informar.

De volta ao livro que a Bianca me deu, reproduzo aqui um trecho da sua primeira página: ”Capa e eu estávamos deprimidos, não tanto pelas notícias, mas pela forma como eram manipuladas. As notícias deixaram de ser novidade, pelo menos as que interessam a todo mundo. Em vez disso, tornaram-se um assunto de especialistas. Sentado em uma mesa em Washington ou Nova York, um fulano lê os telegramas e os arranja de maneira que se adaptem ao esquema de seu modo de pensar ou de sua coluna. Hoje, muito do que lemos como notícia está bem longe de ser isso, não passando da opinião de meia dúzia de especialistas quanto ao significado daquela notícia”.

Steinbeck escreveu isso em 1947, pouco antes de iniciar uma longa viagem pela então União Soviética, com o objetivo de retratar o dia-a-dia do povo e explicar o que já estava previsto, uma nova guerra que não se desenvolveria no campo de batalha tradicional. Sem trincheiras, sem bombardeio, mas que com igual potencial, como de fato acabou por fazer, colocou a humanidade à beira da extinção.

O que um colono da Ucrânia ou um professor em Moscou tinham a ver com isso? Esse era justamente o cerne da reportagem de Steinbeck e Capa. Coisa que nenhum especialista, por mais preparado e por mais títulos acadêmicos que possua, seria capaz de mostrar.

Pena que o mundo abriu mão de se interpretar. Passou a se explicar pela ótica fria de um julgador acadêmico cujas sentenças não escondem suas predileções, suas convicções ou seus interesses. O mesmo Steinbeck que mostrou num romance-reportagem extraordinário as veias profundas da depressão estadunidense, ao contar a saga de uma família expulsa de Oklahoma, que sonha em trabalhar em uma fazenda de pêssegos na Califórnia (“Vinhas da Ira”, disponível em livro e em filme), agora está a nos apontar que estamos no caminho errado: No caminho fácil e precipitado do julgamento burocrático e frio, mergulhados em um oceano de mediocridade.

Publicado originalmente no site ABCPolítiko, em 29.07.2010

2 comentários:

  1. Parabens! é a sua cara!
    Só não concordo com "PESSIMISMO CRONICO", volto
    a dizer que os piscianos são sensiveis e extremamente realistas.... Voce não acha?

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