sábado, 2 de abril de 2011

Os rios que desaguam as almas

O Tevere  ou Tibre: histórias do surgimento da civilização ocidental na Urbi 
Dizem que os cursos d’água carregam para o mar as esperanças frustradas e as angústias humanas. Tomara.  Na geografia do planeta a relação dos rios com a história dos habitantes de suas margens é bastante reveladora.
É claro que há de se começar pela Urbi, onde desponta discreto, porém marcante, o Tevere ou Tibre, testemunha do surgimento da civilização ocidental. Ele fraciona a cidade. Porém deixa perceber ao observador atento que esteve sempre no cenário da glória romana. O Vaticano na sua margem direita, a Sinagoga à esquerda; o Castelo de Santo Ângelo e a Civita Vecchia.
As águas do Tevere serviram de espelho para as reflexões de Petrônio e lavaram o sangue desperdiçado pelo delírio de cônsules e imperadores.  Tudo isso passou, mas suas águas correm lépidas e atravessam a cidade, como se desafiassem a temporalidade da história.
O Arno, em Florença: reflexo da exuberância do Renascimento
Um pouco ao norte, o Arno é fogoso. Suas águas barrentas parecem voluptuosas. Da ponte construída por Benvenutto Cellini, a poucos metros da Gallerie dele Uffici, ele se ri da fragilidade de uma Florença que já engolfou por mais de uma centena de vezes.
O Arno é vaidoso. Carrega consigo o reflexo da nostalgia do Dante e a prepotência genial de Lorenzo, o Magnifico. Testemunha do Renascimento e do florescimento da ciência do conhecimento, ele desdenha de tudo e se anima nas ruelas milenares, construídas pelos etruscos, para irrigar vinhedos e olivais.
O Sena por sua vez é garboso. Como tudo em Paris parece pouco preocupado com o que pensam dele.  O grande Victor Hugo deu-lhe a incumbência de servir de mortalha para Javert, um estranho personagem obcecado pelo papel que o Estado lhe conferira, e que por anos a fio persegue Jan Valjean, um pobre miserável condenado por roubar um pedaço de pão.
O Sena em Paris: mortalha para um personagem de Victor Hugo
O Sena reflete ainda a Notre Dame e seu Quasímodo, as Tulleries, a Plaza de la Concorde com sua guilhotina inclemente. Na sua margem esquerda abrigou o pensamento revolucionário do século XIX, os sonhos republicanos de Davi, a angústia dos impressionistas, o vigor de Picasso, Rodin e o desespero de Modigliani.
Claro. Não poderia faltar nesta viagem o Tâmisa e pelo menos três referências marcantes. A Ópera dos Três Vinténs, de Bertold Brecht, concebida nas suas docas, Dickens e o realismo pós vitoriano. E o célebre cadáver que boiava nas primeiras cenas de Frenezi, de sir Alfred Hitchcock.
Todo este exercício geográfico, diria lenga-lenga, tem na verdade o objetivo de introduzir uma experiência que eu vivi na juventude. Onírica e sugestiva. Por razões que eu até hoje não entendi me coube o papel de levar importantes documentos para um grupo de brasileiros exilados em Praga, na época a capital da República da Tchecoslováquia. Foi uma jornada de, talvez, 24 horas, mas que me marcaria por toda a vida. Ainda me lembro do frisson na estação ferroviária de Munique e o medo que me acometia de atravessar a Cortina de Ferro.
Foi literalmente em pânico que no meio da madrugada eu me esforcei muito para dizer a um ameaçador oficial de fronteira, com meu alemão de cervejaria, que eu era brasileiro e queria apenas conhecer a terra de Kafka. Depois disso, à medida que o trem avançava lentamente, mas resoluto, pela escuridão dos vales tchecos, o medo deu lugar a uma estranha resignação.
O Moldávia em Praga: lembrança dos tempos tristes da dominação
Era madrugada ainda quando o trem superou por uma grande ponte de ferro, lentamente, um enevoado rio Moldávia. Vieram a minha mente, imediatamente os acordes mágicos de Smetana, a imagem de castelos e de corredeiras.  Um sentimento de paz e tranquilidade me inundou o coração. O rio levara consigo o medo e a resignação.
Quando eu fui a Praga, o sovietismo havia arrasado o país. Os tchecos passavam fome. Tudo que eu comi foi um pedaço de um pão velho com um naco de queijo embolorado e duro. Mas, também conheci uma das minhas maiores paixões. Foi engraçado porque em meio a tanta pobreza, me serviram um copo de cerveja quente.
Do que se trata, perguntei. “Local beer!” – me responderam, com desdém.
A tal “local beer” era uma Pilsner Urquell. Uma cervejaria secular erigida as margens do rio Pilsner, onde um monge, há  muitos e muitos anos, decidiu empregar o lúpulo para manter a fermentação e criou a melhor cerveja do mundo.
Nesta manhã de sábado me acometeu a nostalgia e a lembrança de alguns rios e da história, cujo reflexo, eles guardam em silêncio. Poderia falar do Potomac, do Moscou, do Tejo e de tantos outros.  Minha alma, na essência, espera mesmo que um singelo ribeirão guarde consigo os meus sentimentos. Se não servirem para nada, que sirvam apenas para aguar alguma plantação de milho.




Um comentário:

  1. O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
    Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
    Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

    O Tejo tem grandes navios
    E navega nele ainda,
    Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
    A memória das naus.
    O Tejo desce de Espanha
    E o Tejo entra no mar em Portugal.
    Toda a gente sabe isso.
    Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
    E para onde ele vai
    E donde ele vem.
    E por isso porque pertence a menos gente,
    É mais livre e maior o rio da minha aldeia.


    Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
    Para além do Tejo há a América
    E a fortuna daqueles que a encontram.
    Ninguém nunca pensou no que há para além
    Do rio da minha aldeia.


    O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
    Quem está ao pé dele está só ao pé dele.


    Alberto Caeiro

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