quinta-feira, 31 de março de 2011

Be italian!

Sandro Millo e Mastroianni: Guido e Carla na versão de 1963

Penelope Cruz: uma Carla tremendamente sensual
Um dos mais trepidantes e avassaladores personagens do universo felliniano, sem dúvida, é o diretor atormentado de 8 ½, Guido Contini. Ele não tem o glamour do jornalista de La Dolce Vita. Mas, é interessante notar como ele resume a angústia da criação, o confronto do processo com a indústria do cinema, e, sobretudo, o sentimento de perda nas relações interpessoais.
Fellini queria sir Laurence Olivier para o papel. Não deu certo. Sobrou para Marcelo Mastroianni. Recentemente Rob Marshall bateu o pé que queria Daniel Day-Lewis para o remake, de 2010, chamado Nine. O ator irlandês, aliás, excelente, relutou muito em aceitar.
As duas produções, separadas por 57 anos, buscam na essência “abrir a cabeça” da mesma pessoa. E aí é interessante fazer uma comparação que resulta evidentemente na constatação que o mundo mudou muito neste tempo. Diria que mudou até demais.
Michael Tolkin e Anthony Minghella reescreveram o original na forma de um musical. E, definitivamente, mesmo 57 anos e um avanço vertiginoso na técnica cinematográfica depois, Marshall leva uma surra descomunal de Fellini na condução da câmara.
Anouk Aimee: A Luisa original de 1963, menos ingênua 
Na versão original, Carla (interpretada por Sandra Millo) é apenas uma bobinha deslumbrada, a amante casada de Guido. Na versão de Marshall, Penélope Cruz é uma bombshell (incrível como ela ficou à vontade neste papel), mas com um poder impressionante de se contrapor não como alternativa, mas como a obsessão sexual que o perseguia.
Guido e Luisa: versão 2010
A Luisa de Marshall, Marion Cottilard, por outro lado, fica muito distante, quase uma galáxia inteira, da de Fellini, Anouk Aimeé. O Guido de Day-Lewis tenta desesperadamente convencer que ela é o esteio, a estrutura do seu talento. Repete isso tanto, sem a contraparte, que cansa.
Finalmente chegamos a Cláudia. Este personagem é interpretada por duas atrizes ícones, cada uma de sua geração: Cláudia Cardinale e Nicole Kidman. Na cabeça de Guido, Cláudia é a única certeza que ele tem. O Guido de Mastroianni se coloca de joelhos diante dela. E aqui também a fascinação fica limitada ao fato de que ele a considera a única capaz de interpretar uma personagem que ele ainda não havia concebido. O de Day-Lewis é claramente atraído pelos excepcionais dotes físicos da australiana e leva um fora um tanto quanto diferente: ela descarta o papel de resolver o binômio Carla-Luisa. Isso não está colocado no primeiro filme.
Mas, o melhor do confronto entre as duas produções está mesmo no resultado que emerge do Guido/Mastroianni e do Guido/Day-Lewis. O primeiro se resolve no set, iniciando a filmagem. E se resolve diante do mundo. Quando ele ordena, “gira!”, sabe que está de alguma forma interferindo na realidade do mundo. O outro ordena, “action!”, e nos deixa em uma situação bastante surreal: o que vai sair daqueles rolos? Invariavelmente um libelo sensual e egocêntrico.
E antes que me acusem de old fashioned, ou de saudosista, ou pior, de anacrônico, quero dizer que não tenho nada contra. Na essência gosto dos dois personagens.
Fellini tirou um subproduto interessante de seu 8 ½: Città delle Donne. E deu vida novamente a Guido Contini, com o mesmo Mastroianni, em uma situação bem diferente: envelhecido.
Curioso que neste pequeno universo – extraído de um sonho do seu Guido – Fellini esbanja uma sensualidade latente, mas politicamente correta e claramente mórbida. Não se vê mais a crise de criação, mas um confronto de valores. Como o Guido original é o alterego de Fellini, dá para dizer mesmo que ele não gostou da evolução que viu.
Mas, Fellini escreve certo por linhas tortas. Pena não poder ouvi-lo sobre este dilema sexual criativo do novo Guido.
Assistir aos dois filmes foi um exercício bem interessante, que eu recomendo. Juro que é melhor do que se entreter com a gagueira alheia.

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