segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A marca da maldade

Ulysses Guimarães: morto pela Talis muito antes do helicoptero que se perdeu
Uma das coisas que eu aprendi ao longo de 40 anos de profissão é que o meio jornalístico é mau. Malvado mesmo. Um ofidário como diria Elio Gaspari. A competição é uma das marcas registradas desta profissão: quem consegue a notícia mais sensacional, quem consegue agradar o seu editor, ou o dono do jornal. E nesta corrida, vale tudo: dedo no olho, rasteira, voadora no peito e assim por diante.
Jornalistas competem com jornalistas, muito mais que jornais e revistas competem entre si. E isso se explica pelo motor da atividade: a vaidade.
Neste cenário as maldades são comuns. Algumas singelas como informações desencontradas ou confusões propositais. Outro dia me ligou um repórter flamante, daqueles que imagina vencer o Pullitzer naquela manhã. A arrogância dele era tal que eu não me contive. Na décima vez que ele perguntou o meu nome, não tive dúvidas:
- Gustavo Capanema.
- Pois é senhor Capanema eu queria conversar com o ministro Paulo Haddad sobre.....
Um dos mais brilhantes jornalistas que eu conheci foi o repórter e editor José Carlos Bardawill.
Erudito como poucos. Apreciador de bons textos, Bardawill era a competição em pessoa. Ele competia com a própria sombra, não confiava em ninguém. Tinha lá o jeito dele de trabalhar e era extremamente competente, ainda que a sua marca registrada fosse o folclore. As pessoas sempre se lembram que ele caiu no túmulo do Juscelino tal a ansiedade em estar presente no enterro do ex-presidente.
Um dos divertimentos mais cruéis do grande Mino Carta, na antiga IstoÉ era receber o telefonema de Bardawill, então chefe da sucursal de Brasília, as quatro horas da manhã, em meio ao fechamento da edição e desopilar o fígado:
- E aí Mino? Tudo bem? Posso fechar a sucursal?
- Bardawill, como fechar a sucursal? Você me apunhalou pelas costas. Estamos com um buraco enorme aqui porque a reportagem que você mandou não se sustenta. Deste jeito será impossível mantê-lo no cargo.
- Mas, Mino, como isso é possível, as informações foram checadas e rechecadas?
- Naaaaaaaaaao Bardawill, você me apunhalou pelas costas!
O pobre Bardawill ia dormir certo que havia perdido o emprego e, ainda que o Mino pregasse esta peça nele toda madrugada de sexta-feira, nem a publicação da reportagem na edição de sábado o convencia de que se tratava de uma maldade pura.
Mas, a maior sacanagem com o Bardawill rolou assim meio que sem querer, quando ele vivia em São Paulo e era o editor de política do Jornal da República.
O cabeçalho de um jornal revolucionário: Bardawill era editor de politica
O chefe da produção do jornal, Talis de Aquino, decidiu forjar um despacho da antiga Agência Jornal do Brasil informando a morte do então deputado Tancredo Neves. Era algo mais ou menos assim:


Brasília, 6 (AJB) – URGENTE --- Acaba de falecer no plenário da Câmara dos Deputados o deputado Ulysses Guimarães. (SEGUE).



O malvado do Talis misturou o despacho da AJB no meio de outros despachos e colocou-se em posição privilegiada para acompanhar a reação do editor.
Bardawill soltou um longo Ohhhhhhhh! Mas, não deu sinal de maiores reações. Não pegou o telefone, não ligou para ninguém.

O malvado partiu para o segundo telegrama:


Brasília, 6(AJB) – URGENTE --- Um ataque cardíaco fulminante tirou a vida agora há pouco do deputado Ulysses Guimarães, no plenário da Câmara dos Deputados. O parlamentar paulista chegou a receber respiração boca-a-boca do senador Tancredo Neves, mas seu coração não resistiu. (SEGUE)


Desta vez, a emoção foi forte demais. Bardawill praticamente invadiu o aquário do Mino não só para comunicar a tragédia, como para receber orientações do editor.
Não foi muito difícil para o Mino perceber que se tratava de uma das muitas maldades que se perpetrava com o ingênuo Bardawill e disparou a instrução mortal:
- Façamos o seguinte. Você fecha a edição que vai para o Interior e aí se concentra em uma grande reportagem, coisa de seis páginas: “O Ulysses que eu conheci, por José Carlos Bardawill”.
Vaidade? Auto-suficiência? Ninguém nunca vai saber o que passou na cabeça dele. Mas, o certo é que Bardawill fechou a seção de Política do Jornal da República em velocidade recorde. O Talis, por sua vez, produziu mais de uma dezena de telegramas dando conta da decretação do luto oficial, da reação dos militares, do mundo político e assim por diante.
Bardawill deu uns três telefonemas e se contentou em ser o informante da pretensa desgraça que havia ocorrido em Brasília. Nada, nem mesmo a verdade, iria impedi-lo de escrever o texto da sua vida.
Era pouco mais de nove horas quando ele voltou ao aquário com o calhamaço de laudas. Coisa de mais de duas mil linhas. Ali estava competentemente registrada a vida do lendário deputado Ulysses Guimarães.
Deu dó!
No domingo seguinte, Bardawill estava de plantão quando chegou as suas mãos um novo telegrama da Agência Jornal do Brasil:


Florianópolis, 10(AJB) – URGENTE --- O ex-senador Petrônio Portella, ministro da Justiça, sofre um enfarte em hotel de luxo na cidade de Laguna.


- Ah! Não! Vocês querem me aplicar de novo? Desta vez eu não caio.
Portella faleceu naquele domingo.
Que maldade!

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