terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Papel aceita tudo, ou quase tudo


Sinclair com a vizinha de François: delírio de um escritor diante do quotidiano

Uma das coisas que mais fascinam jornalistas, romancistas e todos aqueles que têm o privilégio de transformar seus pensamentos em palavras escritas é o poder das pretinhas (atenção politicamente corretos, me refiro as teclas de uma antiga máquina de escrever, não precisam se ouriçar).
De fato, diante de um teclado de computador, qualquer um de nós se sente uma espécie de deus, com o poder de materializar em palavras nossas fantasias, nossos sonhos, nossas incompetências e nossas competências. Uma amiga minha muito querida e há muito sumida, Anita, dizia mesmo que eu me transfigurava diante da máquina de escrever.
Confesso que a manipulação das teclas e o desenvolvimento das idéias na tela me dão um certo prazer, as vezes mórbido, as vezes entusiasmante. Conheço muitos colegas e escritores competentíssimos que sofrem muito para escrever. Felizmente não padeço deste mal.
Mas, a arte de projetar a nossa mente na tela, não raro esconde o nosso eu verdadeiro. Um de meus personagens favoritos é um escritor de novelas ordinárias, que se projeta no personagem que ele cultua. Estou falando do filme O Magnífico (1973) de Philip de Broca.
Nele um escritor chamado François Merlin sobrevive nos subúrbios de Paris à custa de um herói fictício Bob Sinclair. Merlin, vivido por Jean Paul Belmondo, é um fracassado, tímido, cobiça com os olhos a vizinha vivida pela belíssima Jaqueline Bisset, certamente uma das atrizes mais lindas de todos os tempos.
Jaqueline Bisset: uma das maiores musas dos anos 70
O filme é uma bobajada. Diverte sem compromissos. O engraçado é que Merlin transforma os personagens do seu quotidiano nos vilões da história de espionagem, que tem Sinclair como seu alter-ego. Assim, os encanadores são agentes da Albânia, seu editor é um super-vilão e sua vizinha, claro, a heroína apaixonada por ele.
Uma das melhores piadas do cinema começa com o mergulho de Sinclair na piscina do Hotel Plaza em Acapulco. Quando ele sai da piscina se dá conta que sua pílula de cianureto escondida junto de seu maxilar ( que ele usaria para se matar, caso fosse necessário) havia desaparecido. Ao virar-se para a piscina, vê dezenas de corpos boiando.
Um outro caso de escritor que se projeta na própria realidade é o cultuado Ian Fleming, o cara que inventou o maior agente secreto do século XX, James Bond.
Fleming foi um repórter medíocre da Reuters na segunda guerra mundial. Sua família pertencia a aristocracia decadente britânica e ele então decidiu criar um personagem para se projetar. E cá entre nós, Bond, James Bond, era o máximo da elegância e da sofisticação. Quem viu os primeiros filmes da série, sabe do que estou falando.
Quando eu era adolescente, era fissurado num pocket-book muito popular àquela época chamado Brigite Montfort. Era uma agente da CIA, que barbarizava a guerra-fria com seu corpo escultural, moreno, seus olhos azuis e sua capacidade de seduzir os agentes russos.
O apelo ainda era mais chulo. Brigite era filha de Gisela, a espiã nua que abalou Paris. Na verdade, uma dançarina de Cabaré que seduzia os oficiais alemães e lhes arrancava informações que eram repassadas para a Resistência Francesa.

Brigitte: espiã sexy criada por Benício

Meu Deus, viajei muito embalado por Brigite Montfort e Gisela, até descobrir que elas e suas histórias foram criadas por um escritor espanhol Antonio Vera Ramirez, que escrevia com o pseudônimo de Lou Carrigan. A imagem que ainda persiste na minha lembrança foi criada por José Luis Benício, o mestre das pin-ups brasileiras, seguidor de ninguém menos que Norman Rockwell.
O poder do papel é  tremendo. Merlin vira Sinclair, mas termina como Merlin apaixonado pela vizinha. James Bond já mudou de cara um sem número de vezes, mas será sempre o alter-ego de Fleming. E Brigitte, criação de um espanhol, viverá sempre pelos traços de Benício.


 
   

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