quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O fim de 2010 e a inspiração do bardo

Sir Laurence Olivier como Henrique V: pequeno exército de irmãos na França
Não me lembro de um ano tão longo como esse 2010. Foi como se estivéssemos vivendo uma trama shakespeariana, com todos os componentes, o bufanismo, a tragédia e, claro, a perspectiva de futuro.
William Shakespeare é um destes fenômenos estranhos. Costumo dizer que ele se insere naquela galeria de seres de outro planeta que aportaram na terra, indiferente ao seu tempo e aos seus costumes. Na minha época de universidade, tínhamos o hábito de assumir uma de suas peças. Assim, um era Otelo, outro Hamlet, outro Romeu e assim por diante.
O bardo, como é chamado, desde os tempos elizabetinianos, até hoje, desafia a compreensão de tantos, e a cada reedição ou adaptação para o teatro ou para o cinema, provoca sempre uma polêmica acalorada e apaixonada. Eu tenho uma prima chamada Ofélia. Aliás, uma prima querida, professora e gestora educacional no interior de Minas Gerais. E, de longe, talvez a tragédia do príncipe dinamarquês seja a mais encenada e conhecida do peça do célebre autor inglês – ou quem sabe siriano.
Neste final de ano, com tanto frisson pelo que ele representa, saltou à minha lembrança um dos meus personagens preferidos entre tantos.
Não. Não é Julio César, embora considere a mais política de suas obras.
Trata-se de um rei pequeno, cercado por um pequeno grupo de seguidores, diante de uma cultura terrível de traições, que se dispôs a unificar os reinos da Inglaterra e da França. Me refiro a Henrique V, o monarca que reivindicou um trono e recebeu uma caixa de bolas de tênis em resposta.
Lembro-me pelo menos de duas versões no cinema. Uma por Sir Laurence Olivier e outra mais recente de Kenneth Branagh. As duas são excepcionais. Uma mais teatral e outra mais cinematográfica.

 Branagh : a vigília de São Crispim e São Crispiniano

Como em toda obra de Shakespeare há um pouco de verdade e um pouco de ficção. A batalha de Azincourt de fato existiu. Ela se insere entre os maiores equívocos militares de todos os tempos. Henrique estava subjugado por um exército e uma cavalaria pelo menos três vezes maior, em uma posição de defesa quase desesperada, enfiado em uma depressão. Ou seja: os soldados ingleses teriam que enfrentar uma carga francesa que desceria dos morros para atacá-los em um vale.
Ocorre que na vigília da batalha, na madrugada do dia de São Crispim e São Crispiniano, dois sapateiros martirizados na Gália no ano 287, choveu muito e o terreno de batalha transformou-se em um lodaçal. Um dos generais de Henrique, Glócester, propôs ao seu suserano que dispusesse seus soldados nos flancos, permitindo que os franceses descessem para o vale sem enfrentar obstáculos.
Foi o que aconteceu. A arrogância do Delfim ordenou um ataque maciço pelo centro. Os cavalos se atolaram no lamaçal e os soldados franceses foram presas fáceis dos ingleses, que caíram sobre eles, pelas laterais.
Naquela vigília terrível, Henrique cobriu-se para não ser identificado e percorreu o acampamento de suas tropas para medir o grau de lealdade e o espírito de seus soldados. Antes da batalha, proferiu uma oração brilhante, da qual reproduzo um dos trechos mais emblemáticos:

... “Hoje é o dia da festa de São Crispim; quem sobreviver a este dia voltará são e salvo para casa, ficará na ponta dos pés toda vez que falarem no dia de hoje e crescerá só com o nome de São Crispim. Quem sobreviver a este dia e chegar à velhice, anualmente, na vigília desta festa, convidará os amigos e dir-lhes-á: ‘Amanhã, é dia de São Crispim’. Então, arregaçará as mangas e, ao mostrar as cicatrizes, dirá: ‘Recebi estas feridas no dia de São Crispim’. Os velhos esquecem; entretanto, aquele que de tudo se tiver esquecido, lembrar-se-á, mesmo assim, com satisfação, das proezas que realizou naquele dia. E então, nossos nomes serão tão familiares em suas bocas quanto o nome de seus parentes; o rei Henrique, Bedford, Exeter, Warwick, Talbot, Salisbury e Glócester ressuscitarão na lembrança viva e saudável com taças espumantes. Esta história será ensinada pelo bom homem ao filho e, desde este dia até ao fim do mundo, a festa de São Crispim e São Crispiniano nunca passará sem que esteja associada à nossa recordação, de nosso pequeno exército, de nosso feliz pequeno exército, de nosso bando de irmãos; porque, aquele que hoje verter o sangue comigo será meu irmão; por muito vil que seja, esta jornada enobrecerá sua condição e os cavaleiros que agora permanecem na Inglaterra, deitados no leito, sentir-se-ão amaldiçoados pelo fato de não se encontrarem aqui e considerarão de baixo preço a própria nobreza, quando ouvir falar um daqueles que combatera conosco no dia de São Crispim!”....

Neste final de 2010, só posso repetir o rei Henrique: “...e os cavaleiros que permanecem na Inglaterra, deitados no leito, sentir-se-ão amaldiçoados pelo fato de não se encontrarem aqui....”

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