sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Quando a realidade supera a ficção

O Grande Irmão: aquele que tudo vê, reescreve a história e determina o futuro
Diz-se que a boa ficção é aquela que se confirma. Confunde-se ficcionista com pitoniza, o que é um erro de essência. Afinal, ainda que a ciência humana não tenha conseguido desenvolver um computador como o Hal 9000, não dá para dizer que a obra de Arthur Clarke fracassou na visão do homem que busca o princípio criador.
Mas, é principalmente na ficção política, mais do que na científica, que as entrelinhas se afirmam como base de conteúdo. Para isso é preciso mergulhar nos anos 50, quando a geração baby-boomer se confrontou com o fantasma autoritário do futuro. Foi quando George Orwell concebeu 1984 e Ray Bradbury anteviu a tragédia de Farenheit 451.
Ao pé da letra as duas obras, excepcionais exercícios ficcionais, concebem regimes transnacionais, ultra-autoritários. No primeiro se relativiza a história, com a criação do Ministério da Verdade, onde todas as informações que se confrontassem com o sistema eram adulteradas ou apagadas. No segundo, pura e simplesmente se abole a escrita como forma de comunicação, com as implicâncias inerentes, qual seja a destruição de todo e qualquer documento ou obra literária impressa. Cria-se uma nova linguagem baseada apenas em imagens.
Montag e os incendiários de Farenheit 451: livros deveriam ser queimados
Nenhum dos dois autores teve o privilégio de antever a revolução digital, mas ambos atribuem um poder descomunal a um veículo que apenas engatinhava nos anos 50, a televisão. Em Bradbury, a tevê é a única forma de entretenimento permitida, com uma inimaginável, para a época, interatividade. Numa sociedade fria, formada por autômatos, era permitido participar da produção de espetáculos de televisão a partir da própria sala de estar. E chega a ser hilária a concepção do Teatro da Família, quando dois personagens discutem na tevê a disposição de visitantes em uma casa e perguntam a um terceiro personagem, que está assistindo, a sua opinião. Ela responde apenas “absolutamente”. E esta resposta lhe vale uma série de elogios ao final.
Em Orwell a televisão é mais sofisticada. Ela funciona como hipnotizadora e como controladora do comportamento dos cidadãos. Invade a privacidade de todos e simplesmente delata aqueles que não se enquadram nos ditames do Grande Irmão, ou se preferirem Big Brother. Quando Winston Smith descobre que há uma tela de televisão no refúgio onde mantém encontros secretos com sua amada, o desfecho da tragédia é evidente. Sabe-se que os amantes serão presos e reeducados.
Tanto Smith, criado por Orwell, como Montag, criado por Bradbury, emergem de dentro do sistema. O primeiro é funcionário do Ministério da Verdade e o segundo é um bombeiro em carreira ascendente, cuja função primordial e única é incinerar os livros encontrados. Os dois começam a se questionar pela contradição. Orwell mais pessimista condena Smith à reeducação e o dilui na massa de seguidores do Big Brother. Bradbury, mais otimista, leva Montag a uma comunidade subversiva, onde os sobreviventes do regime decoram seus títulos preferidos sob a perspectiva de um dia eles voltarem a ser impressos.
Curiosamente, Orwell nunca teve uma boa tradução para o cinema. Houve duas adaptações, ambas britânicas, que reduziram a ficção a um thriller e permitiram que a essência do drama ficasse diluída. Bradbury teve mais sorte. Seu Farenheit 451, sob a competente direção de François Truffaut, com Oskar Werner e Julie Christie (disponível em DVD), tornou-se um dos clássicos da filmografia do competente diretor francês.
Cerca de 50 anos depois de ambas as concepções, pode-se dizer que os dois erraram na profecia de que a humanidade seria dominada por um regime politicamente totalitário. Naqueles tempos quando a guerra-fria propunha a incerteza quanto ao amanhã, não poderiam imaginar que a dominação se daria por normas de comportamento e de consumo.  Acertaram na imbecilização através da cultura de mídia, onde as massas são levadas a consagrar preceitos globais e a propaganda torna o não-consumo insuportável.
Orwell faz com que os filhos entreguem os pais à inclemência do Grande Irmão. Bradbury faz com que a mulher de Montag denuncie que o marido escondia livros em sua casa. Nas duas obras, as relações pessoais são frias e objetivas. Os sentimentos humanos são substituídos por um carreirismo frio e sem objetivo. Smith se dá mal porque descobre a paixão que lhe desperta o questionamento. Montag pelo questionamento descobre um mundo que lhe era negado e que justificava a sua existência.  
Não dá para dizer que Bradbury e Orwell tiveram visões proféticas que se confirmaram nestes 50 anos. Mas, acertaram em cheio na involução do questionamento do enunciado básico do existencialismo: quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Aliás, ninguém mais parece preocupado com isso. A formulação atual é outra: quem mais tem, mais pode; quem não tem, não pode. Certamente este cenário, real nestes primeiros anos do século XXI, encheria os corações e as mentes dos dois autores de um terror muito maior que aquele antevisto no mundo do Big Brother, de Orwell, ou dos primos de Bradbury.




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