sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Los periodistas brasileños son todos mentirosos!


Ônibus na rota de Caaguazu: vigilância contra camponeses sediciosos

Nestes tempos em que se voltou a discutir o direito dos jornalões dizerem o que bem entendem, me veio à lembrança um episódio que tem a ver com o direito dos repórteres de apurarem os fatos.
Um camponês paraguaio da cidade de Caaguazú, revoltado com a arrogância dos tecnocratas de Itaipu e pressionado pela realidade agrícola do país, decidiu sequestrar um ônibus com outros 30 companheiros, para se dirigir a Assunção e protestar ao presidente Stroessner, aquela figura meiga, democrática e honesta.
O ônibus foi sequestrado na saída da cidade fronteiriça de Presidente Stroessner, hoje Ciudad del Leste, e jamais chegou a Assunção. Na verdade, escafedeu-se em alguma curva da Rodovia Panamericana.
Chegamos a fronteira eu e o companheiro Hélio Campos Mello pouco mais de 24 horas depois do seqüestro. Decidimos que iríamos chegar a Caagazú de ônibus e tomamos o primeiro com destino a Assunção, com o cuidado de solicitar ao motorista que nos avisasse no momento em que ele passasse pelo nosso destino.
O ônibus merece uma descrição. Era um velho coletivo inglês, provavelmente construído pelo esforço de guerra, com os pneus carecas e um motor dentro da cabine que reproduzia com perfeição o que imagino ser o som do inferno. Além disso, dezenas e dezenas de cucarachas, como astronautas da primeira viagem a Vênus, habitavam alegremente as paredes.
Pode-se dizer que entrava tudo naquele ônibus. Não entrava gado bovino porque não passava pela porta. Porcos e galinhas havia pelo menos seis de cada. Inclusive um galináceo, cuja proprietária tomou o cuidado de equipar com uma fralda descartável.
Logo na saída da cidade, uma barreira do exército vistoriou o ônibus, sabe deus em busca do quê. Implicaram com o volume de filmes que o Hélio levava. Mas, se satisfizeram com a explicação de que nós éramos representantes, vendedores, da Kodak.
Amparados por uma daquelas pocket bottles de White Horse, empreendemos a viagem ao som imaginário de uma guarânia. Finalmente, no meio da madrugada, o velho ônibus parou no meio do nada e o motorista nos apontou a porta.
Descemos em um escuro profundo. O Hélio explodiu um flash para que conseguíssemos ver a placa que apontava Caagazú: 5 kms. Sem qualquer alternativa, começamos a caminhada por uma estrada de terra, guiados apenas, eventualmente, pelos nossos Zippos.
No meio da caminhada, enquanto ríamos da condição em que estávamos, fomos abordados por uma patrulha do exército paraguaio. Meninos de rosto pintado, armados com fuzis veteranos da Guerra do Chaco, grunhindo em guarani:
- Aonde vão?
Estava tão escuro e a dificuldade de comunicação foi tão grande, o aparato da patrulha era tão ostensivo, que emergiu uma conclusão óbvia: estávamos na pista certa.
Fomos revistados, minuciosamente. Implicaram de novo com a quantidade de filmes. Mas, enfim, nos liberaram.
Quando chegamos à cidade, não havia uma só lâmpada acesa. Havia um único hotel, se é que poderíamos chamar aquele estabelecimento assim. Quase derrubei a porta, até que apareceu um sujeito vestido em uma camisola, barrete, e um lampião de querosene nas mãos.
- O que vocês querem?
- Dormir, tomar um banho, essas coisas do mundo civilizado.
- Estamos completamente lotados. O máximo que eu posso fazer é deixar vocês dormirem nos sofás da recepção.
Eram uns sofás surrados, forrados com courvin. A criatura ainda nos arrumou uns lençóis, cobertores e travesseiros.
Dormimos em instantes. Acordei ouvindo a voz do Ricardo Kostcho e um burburinho. A cidade também despertara. As pessoas cuidavam dos seus afazeres normalmente, como se nada tivesse acontecido.
Igreja de Caaguazu: padre apavorado. "Nao vi nada!"
A bordo de uma xícara de café com leite, pão com manteiga, nossa equipe agora era formada por quatro profissionais, Ricardo Kostcho e Ubirajara Dettmar, pela Folha, eu e o Hélio, pela Istoé. Nossos amigos tinham alugado uma Brasília, em Foz, e por esta razão haviam chegado a tempo de conquistar uma cama. Por onde vamos começar? Não dá para sair pela rua perguntando: “Vocês viram um ônibus com camponeses revoltados por aí?”. Não dá para ir à delegacia de polícia.
Igrejeiro como ninguém, Ricardo teve uma idéia brilhante: o padre!
E lá fomos nós para a paróquia local. O padre rezava uma missa para umas 15 almas piedosas. Estava dando a comunhão. Esperamos um pouco e literalmente invadimos a sacristia.
- Sim, meus irmãos, o que posso fazer por vocês?
O piedoso pastor ficou literalmente em pânico quando lhe perguntamos sobre o ônibus.
- Não sei de nada. Não vi nada.
Insistimos e insistimos. E com as mãos no rosto, coberto de vergonha, o jovem padre praticamente murmurou entre os dentes.
- Estão todos mortos. Passaram por aqui, foram levados a um acampamento do exército, e foram executados.
- Mas, onde é este acampamento?
- Sigam por trás da igreja, sempre em linha reta. Mas, tenham em mente que vocês podem ter o mesmo destino dos camponeses.
Nós quatro engolimos em seco, mas saímos em desabalada carreira, estrada a dentro, com algumas precauções. O melhor volante de nós era o Hélio. Mas, decidimos que tanto ele como o Dettmar deveriam ir no banco de trás, com as máquinas prontas para disparar. Assim, me coube o papel de piloto.
Imprimi uma velocidade segura, evitando sobressaltos – as populares costelas de cabrito – e, de repente, estávamos cercados por um verdadeiro teatro de operações. Helicópteros, blindados, a soldadesca em movimento.
Fomos presos em minutos. Mãos na cabeça. Revistados à exaustão e encaminhados a um certo coronel Pastor, o comandante da operação. No percurso até a barraca do coronel, ainda vimos os 30 corpos cobertos com aquele plástico preto, e o que parecia ser a estrutura de um ônibus incendiado.
- O que vocês estão fazendo aqui? Quem são vocês?
- Nós somos jornalistas brasileiros e estamos procurando um ônibus com camponeses que se dirigia a Assunção.
- Não existe nada disso. Estamos aqui apenas fazendo manobras.
- Mas, coronel, temos informações que eles foram trazidos para cá. O que são estes corpos e este ônibus incendiado?
Nesse momento, tinha absoluta convicção de que estávamos diante do Rio Rubicão. Ou teríamos as informações e não sairíamos de lá vivos, ou nem teríamos as informações.
- Eram subversivos. E nós aqui tratamos esta gente deste jeito.
E aí coroou com a frase cabal:
- Los periodistas brasileños son todos mentirosos!
Disse com ironia, alto e claro, e complementou ordenando que nos prendessem.
No caminho, sabe deus para onde, um tenente com cara de fuinha começou a desenhar um cenário de horror.
- Acho que vocês não têm saída. Comecem a se despedir da vida.
Falou isso no mesmo momento em que passávamos pela Brasília alugada. Dettmar, safo como ninguém, enfiou a mão no bolso, tirou um monte de cédulas, pôs na mão do tenente e gritou.
- Vamos gente!
O recado foi entendido num segundo. Acho que nunca dirigi com tanta rapidez! Ainda ouvimos tiros quando saímos. O tenente, tentando livrar a cara, com certeza. Aliás, uma das balas, conferimos depois, ficou cravada no pára-lama da Brasília!
No asfalto, voando em direção à fronteira, correu um frio na espinha de todos. Como diabos nós vamos atravessar a ponte? Será que o tal coronel deu o alarme? E se nos pegarem lá?
Alguém sugeriu que procurássemos o cônsul brasileiro em Puerto Stroessner.
- Esquece.


Ponte na fronteira"Por que vocês querem me enganar?"
A antiga Ciudad del Leste regurgitava de turistas, ávidos pelas compras. A ponte estava bem movimentada, com as velhas sacoleiras, ônibus de turismo, etc... Mas, só havia movimento no lado brasileiro.
Passamos na aduana paraguaia sem emitir um som, devargazinho... Quando chegamos no lado brasileiro, um funcionário da Polícia Federal nos obrigou a descer do carro. Ficou enlouquecido com os equipamentos do Dettmar e do Hélio.
- Vocês querem me enganar que este equipamento é do jornal e que vocês não compraram nada no Paraguai?
- Não compramos. E não queremos te enganar.
- Por quê? Todo mundo aqui quer nos enganar.
Porque somos jornalistas. Y los periodistas brasileños son todos mentirosos!
A ditadura do general Stroessner não se dignou nem responder a matéria do Ricardo e do Dettmar na Folha e nem a minha e do Hélio na Istoé.
Os camponeses foram enterrados. Suas famílias, expulsas do país. E ficou por isso mesmo. .


Um comentário:

  1. Paraguay eh Paraguay. Ainda mais no tempo do Stroessner. Mas eu amo aquilo, mesmo assim.
    Garcia Marques não teria tanta imaginação, nunca deve ter ido lah. Adorei o "Inclusive um galináceo, cuja proprietária tomou o cuidado de equipar com uma fralda descartável".
    Coisas do Matriarcado Guarany.
    Atencion Esmerada, como dizia a placa do bordel em Hernandarias-Itaipu. Muy Esmerada!

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