quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Rio de Janeiro continua lindo!

Rio nos anos 50: as águas da Baia da Guanabara batiam na Praia do Flamengo
Confesso que o Rio de Janeiro é uma cidade que desafia a minha compreensão. E não é de hoje. Ainda pequeno não entendia porque antes de voltar para São Paulo, o velho Nunzio passava na rua da Alfândega para carregar o carro com caixas de White Horse. Também não entendia porque, invariavelmente, as calotas do velho Cadilac dançavam todas as vezes.
O velho Nunzio adorava o Rio. E eu aprendi a gostar com ele, pelas mãos dele. Ainda me lembro dos estúdios do Canal 6, na Urca, onde o velho dizia que tinha visto Carmem Miranda e o Anjo Azul, Marlene Dietrich, nos tempos do Cassino. Nós ficávamos no Hotel Novo Mundo, ao lado do Palácio do Catete, sede da República, de onde um presidente “havia deixado a vida para entrar na história”.
Me lembro da avenida Central, quer dizer, avenida Rio Branco (também não sou tão velho assim). Da Cinelândia, do Municipal, da Biblioteca Nacional, dos sabores exóticos do Adegão Português, em São Cristovão, e da sopa Leão Veloso, na praça Mauá.
Não sei dizer se naqueles anos 50, quando a água da Baia da Guanabara ainda se esborrachava na praia do Flamengo, a vida no Rio era tão insegura. Mas, quando comecei a frequentar a cidade 20 anos depois, a sensação era mesmo essa. Saltava aos olhos não só a tolerância como a cumplicidade. O que mais eu ouvia era: “Olha, o Rio tem os mesmos problemas que qualquer cidade grande, mas é lindo, tem as praias mais bonitas do mundo”.
De fato é lindo. Em minha opinião, modesta, a cidade mais bonita do mundo. Mas, definitivamente, já naquela época, não tinha os mesmos problemas que qualquer grande cidade do mundo. O Rio era diferente.
Um episódio inesquecível ocorreu em um final-de-semana em que estreei um Passat novinho, financiado em milhares de prestações mensais. Fiquei em um hotel na avenida Nossa Senhora de Copacabana e parei o carro em uma das transversais, menos de 50 metros da porta do hotel. Duas horas depois, quando saí para jantar, o carro desaparecera.
Fiquei meio perdido, sem saber o que fazer, e liguei para um grande amigo, advogado, Manoel Luís, relatando o ocorrido.
Ele calmamente tomou os dados do carro, cor, placa, etc... E me mandou de volta para o hotel.
- Pede um gin tônica que você adora e me aguarde aí.
Tomei um, dois, três, quatro, comi amendoins até me enjoar e nada do Manoel.
De repente, ele me aparece no bar do hotel, com aquela efusividade de sempre.
- E aí, vamos jantar?
- Porra, Manuel, e o meu carro?
- Calma italiano. Vamos jantar no seu carro.
Claro que eu não acreditei. Mas, o carro estava lá, no mesmo local, até o maço de cigarros que eu deixei no console estava intacto.
- Não pergunte nada, porque eu não vou responder.
Não perguntei.
Castor de Andrade: chefe do império da contravenção
Histórias do Rio? Tenho suficientes para escrever um livro. Mas, talvez a mais interessante foi quando o Dr. Castor de Andrade estava preso na Polinter, na zona portuária, por força da perseguição que as autoridades jurídicas lhe moviam, acusado de liderar o crime organizado na cidade.
Cheguei no Rio de manhã e antes das 10 horas estava na frente de um delegado de polícia, que já estava avisado que o Dr. Castor me receberia para uma entrevista. Ele acenou para um investigador sem camisa, suado, com uma tremenda pistola na cinta, que por sua vez, me entregou um pouco antes da porta da cela para o Haroldo, um crioulo de dois metros de altura por quatro de fundura, que era o guarda costa do rei de Bangu.
Castor de Andrade vestia um rob de chambre de seda, que combinava com um lenço no pescoço. Fazia um calor insuportável. Mas, dentro da cela, um poderoso aparelho de ar condicionado tornava a temperatura super agradável.
Conversamos muito, como sempre. Lá pelas tantas, bateu fome. Havia um garçom na cela que nos servia café e mais café.
- Sua visita me inspirou o desejo de comida mediterrânea, meu caro. O que acha de a gente pedir comida no Da Bambrina, do Leme?
Achei que o velho tinha enlouquecido. Mas, uns 40 minutos e muito papo à frente, o garçom começou a pôr a mesa, com louça inglesa, talheres de prata, copos de cristal, guardanapos de renda, e estávamos agora saboreando Ravióli di Zucca, come primo piato, e Arrosto de Cordeiro, com batatas, come secundo. O vinho? Uma deferência do Dr. Castor: um Luís Pato, reserva especial. Ele adorava este vinho.
Mas, o que ficou de horas e horas de conversa foi uma realidade que ele mesmo explicitou: “Olha, o Estado no Rio está falido. Não consegue firmar o pé. Sempre esteve. O que há hoje é um confronto entre a contravenção (o jogo do bicho) e o crime organizado (o narcotráfico). Se nós perdermos poder, a cidade vai cair na mão deles”.
- Mas, Dr. Castor, a Dra. Denise Frossard acusa o senhor de comandar os dois lados do crime.
- Me admira você, estudioso do crime organizado, não detonar esta neófita. É óbvio que não. Meu negócio é jogo. Meu poder está no jogo. Você sabe disso. E sabe que a base que sustenta o jogo é a confiança. Quem joga sabe que, se ganhar, vai receber, faça sol ou faca chuva. Um cara que passa droga não inspira esta confiança. Veja o que aconteceu com teus patrícios na América!
Havia uma lógica meridiana. E ele seguiu:
- Meu amigo, se um apontador de jogo passar droga também, ele morre. Capito?
Mocidade Independente: nunca mais foi a mesma
O jogo do bicho não acabou no Rio, mas o poder dele sim. Uma industria que empregava mais que a Volkswagen e faturava mais que a IBM, que tinha um livro de contribuição social para a burguesia carioca, incluindo muita gente que fazia discurso moralista, acabou de uma hora para outra.
O Bangu foi para a segunda divisão do campeonato carioca. A Padre Miguel nunca mais ganhou nada. O carnaval mudou. Surgiram as milícias, os confrontos de gangs, os arrastões, as balas perdidas. A situação ficou incontrolável. A corrupção das polícias atingiu o seu ponto máximo.
Já era noite quando o Dr. Castor deu ordens para o bom e velho Haroldo me levar até o carro que me levaria ao Santos Dummont para pegar a última ponte aérea.
- Não precisa, Dr. Castor – retruquei.
- Você me decepciona. Acha mesmo que pode passar o dia todo comigo aqui e vai sair assim, sem mais? Eles vão te apagar aqui na porta da Polinter.
O bom e velho frio na espinha correu rápido. Haroldão pegou um trabuco imenso e me levou até a porta. De repente apareceu uma daquelas caminhonetes Chevrolet, de onde saíram dois gigantes armados até os dentes.
- Boa noite, doutor!
- Boa noite. Obrigado por tudo Haroldão. Deixe minhas recomendações ao Dr. Castor.
É. O Rio continua lindo. Nunca mais vi o Haroldão. Depois da morte do Dr. Castor ele foi fuzilado em um cruzamento na Gávea.

Um comentário:

  1. Nunzio,
    Tá certo que o Rio de Janeiro continua lindo apesar da coisa andar BEM feia por lá, mas eu me sinto um zilhão de vezes mais confortável no Rio do que em São Paulo.
    Oish cariocaish estão sempre naquele mood de malandragem goishtosa (a boa malandragem), sorrindo pelas calçadas, fazendo amigos nas filas de casas de sucoish, com mil coisas para fazer, mas com o Cristo Redentor e o mar (ah, o mar!) bem ali a cada amanhecer e a cada fim-de-tarde.
    Aí, opa!, eis que de repente as pessoas parecem estar apreensivas e preocupadas na rua? Sai, que lá vem chumbo! Pra mim é muito claro, muito evidente.
    Em São Paulo, por outro lado, as pessoas estão sempre sisudas, selfsentered, de cara amarrada e com passos largos de quem tem um zilhão de coisas para fazer. Perguntar onde será que está a estação do metrô, que eu não estou vendo, pode causar um colapso de quilômetros no trânsito. É desconfortável, desagradável, segregador. E eu nunca sei se tá rolando um flash mob de gente que teve um dia péssimo no trabalho ou um atentado terrorista do PCC.
    Toda vez que vou a São Paulo (e, olha, acho deveras agradável passar uma semaninha de vez em quando aproveitando a vida noturna e cuktural de Sampa) me jogo debaixo das asas dos meus amigos brasilienses e cariocas (coitados!) que ali residem.

    O Rio tem calor. Tem atentados terroristas também, mas tem calor. E como eu gosto do calor do Rio!

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