quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Um brinde a Hernandarias


Cenário triste: meninas sonhavam com a "vida fácil "no Porto de Santos

Esta foto aí de cima, aparentemente singela, na verdade é o ponto ápice de um site de reportagem que eu fiz com o João Bittar, 32 anos e muitas existências atrás. Despencamos de um avião da Vasp em Foz do Iguaçu com a incumbência nada singela de registrar o desvio do rio Paraná para a construção da barragem de Itaipu.
Foz do Iguaçu era algo muito parecido com Wichita ou Tombstone, ou seja, o Velho Oeste redivivo. Havia ainda o charme noir da tríplice fronteira. Os tipos mais exóticos e curiosos. O pau comia feio na Argentina. O contrabando corria solto em Puerto Stroessner, hoje Ciudad del Leste, no Paraguai.
Milhares de operários brasileiros e paraguaios trabalhavam avidamente na construção do que viria a ser a maior hidrelétrica do mundo. Mais precisamente no desvio de um rio, o Paraná, com um dos maiores fluxos de todo o planeta.
Era um burburinho danado e nós ficamos hospedados em um hotel, se não me engano chamado Sagres, instalado numa esquina de coisa alguma com lugar nenhum, provavelmente no limiar deste mundo com qualquer outra coisa. Lembro-me que no primeiro dia, lambemos os beiços quando divisamos na porta do restaurante um aviso apetitoso: “Hoje Bacalhau ao Forno”.
Esbaldamos-nos de tanto bacalhau. O problema é que no dia seguinte a mesma mensagem seguia afixada: “Hoje Bacalhau ao Forno”. E assim foi pelos 20 e tantos dias que ficamos por lá. Nunca mais confiei em sugestões afixadas nas portas de restaurantes de hotel.
Nossa aventura daria para escrever um livro. Mas, vou me ater a um episódio bastante divertido. Como havia seis mil operários solteiros nos acampamentos da obra, curiosamente nos interessamos em saber como este pessoal se divertia e o que a direção da binacional fazia para controlar estes divertimentos. Não é difícil imaginar, por exemplo, o que uma doença venérea poderia provocar em um ambiente desses.  
Uma fonte nos havia assegurado que as profissionais do prazer estavam confinadas em uma cidade paraguaia, onde médicos pagos pela binacional faziam regularmente os exames médicos e mantinham controle absoluto sobre todas.
Mas, que cidade era esta? Onde? Como chegar?
Rodamos e rodamos. Quando estávamos a ponto de desistir demos de cara com a pequena cidade de Hernandarias, alguns quilômetros ao Norte de Ciudad del Leste.
Era a hora da siesta, instituição sagrada entre os guaranis. Não havia viva alma pelas ruelas, sem pavimento e bastante esburacadas.
Será aqui? Como vamos saber?
Meretrício que se preza não fica na zona urbana. Mas, também não dá para esperar que anoiteça para que se divisem as luzes vermelhas.
De repente, uma menina de uns 16 anos, bobs na cabeça, sai não sei de onde e se lança sobre o capo do carro.
- Moço me leva para Santos! – disse em claro portunhol.
Achamos. O João desceu com a boa Nikon e desatou a disparar o que provocou uma verdadeira corrida de meninas. Sim, meninas. 15, 16, no máximo 17 anos. Todas, invariavelmente todas, fariam qualquer coisa para que as levássemos para Santos.
Como se eu não soubesse a razão, perguntei a uma delas:
- Por que Santos? Vocês querem ver o mar?
- Não moço, Santos tem dinheiro, marinheiros e porto. Boates sofisticadas. Lençóis limpos...
- Mas, vocês não estão bem aqui?
- Aqui nada acontece e não vai acontecer nada. A gente tem que transar por alguns trocados e uma vez por mês vem um doutor e examina todo mundo. Mas, ninguém vai sair desta vida: transar com pião não dá futuro.
Era uma realidade peculiar. Uma lógica difícil de compreender. E pobre de quem pretendesse racionalizar. Não seríamos nós.
Naquela noite, enquanto tomávamos uma cerveja na beira da piscina do Sagres, eu e o João conversamos pelo olhar. Viramos em direção a Hernandarias e brindamos envergonhados as cenas de degradação que havíamos testemunhado. Não falamos uma palavra. Nem precisava.



     
   

Um comentário:

  1. Foi mesmo impactante e cheio de novidades (pra quem não frequentava semelhantes ambientes...) mesmo porque, sob o cenario lirico de farwest latente das terras guaranies.
    Talvez tenha sido uma das melhores e mais completas reportagens que tive a honra de participar na minha modesta carreira.
    A historia das sonhadoras de Hernandarias -hoje uma cidade promissora- fazia parte de um mosaico jornalistico de cenas, fatos e numeros que compunham a super reportagem a qual garimpamos com muito esforço e calculada ousadia.
    A melhor historia, na minha opinião (e vc. precisa contar essa) eh aquela de como fomos parar na sala do Intendente Naval de Puerto Meira, na Argentina. Essa eh de arrepiar.
    E valeu uma informação fundamental, que soh vc. sabia e escreveu. Grande furo de reportagem, que a IstoE deu.
    Alias, me faz pensar em uma coisa.
    Nossas reportagens naqueles entonces, sempre tinham, Obrigatoriamente, extenso conteudo exclusivo, e pasmem os mais jovens, com relevancia cientifica e novidades. Ou seja, coisas a crescentar, necessariamente.
    Antes da gente conseguir isso, ninguem voltava pra redação. Ou to ficando gagah?

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