terça-feira, 2 de novembro de 2010

O som do holocausto


Auschwitz, na Polônia: judeus eram executados ao som da música de Mozart
No início dos anos 80 eu vivia em um confortável apartamento no bairro de Moema, em São Paulo, e tinha o hábito de mensalmente reunir alguns amigos no sábado para verdadeiras maratonas musicais. Escolhíamos um compositor, cada um de nós levava o seu disco predileto ou a mais recente novidade do mercado fonográfico. E passávamos horas ouvindo e discutindo a história, a interpretação ou a gravação.
Numa destas tardes havíamos escolhido Mozart. Lembro-me da excitação porque recém havia voltado de Buenos Aires com uma gravação extraordinária de O Rapto do Serralho, regida por sir Thomas Beecham.
Wagner: genio de personalidade conturbada
Excepcionalmente naquela tarde, para minha surpresa, fomos diversas vezes interrompidos pelo interfone e uma insistente reclamação quanto ao volume da audição. A insistência tornou-se mais freqüente quando nos dedicamos a ouvir uma gravação da Sinfonia 41, que meu amigo Antonio Carlos, competente baixo-barítono, havia trazido de sua viagem a Europa. Se não me engano, era uma versão de Rudolf Kempe à frente da Orquestra Filarmônica de Viena. Uma raridade!
Naquela manhã de domingo acordei com o cheiro do pão crocante da padaria da esquina e desci lépido para degustá-lo com manteiga. Mas, ao sair do elevador fui abordado por uma jovem muito simpática, em roupas casuais, que certamente me aguardava por algum tempo lendo a gigantesca edição dominical do Estadão.
- O senhor me desculpe por ontem, mas é que minha avó veio morar conosco e ela é sobrevivente de Auschwitz. Não sei se o senhor sabe, mas quando os judeus eram encaminhados para as câmaras de extermínio, os nazistas colocavam Mozart no sistema de som do campo. Foi assim que ela viu seus pais e seus irmãos serem assassinados. Infelizmente quando ela ouve Mozart, todas estas lembranças lhe vêm à mente e ela sofre muito.
Nazistas filhos da puta! Não bastasse terem provocado a morte de 50 milhões de pessoas ainda ousaram manchar a música divina de Wolfgang Amadeus Mozart, um dos mais queridos e amados compositores de todos os tempos.

Bayreuth: o templo wagneriano dos festivais anuais de ópera
 Enquanto vivi naquele apartamento, nunca mais ouvi Mozart, a não ser através dos fones de ouvido.
Lembrei-me desta história ao ler a competente reportagem de Graça Magalhães-Ruether, correspondente de O Globo, em Berlim, a respeito do convite da bisneta do compositor alemão Richard Wagner, Katharina, para que uma orquestra de Israel se apresente no Festival de Bayreuth.
Para quem não sabe, Bayreuth é um templo wagneriano erigido na Bavária, graças a “generosidade” de Ludwig II, em 1876. Desde então, todos os anos no verão, são apresentadas óperas de Wagner e para lá acorrem os mais privilegiados aficionados.
Richard Wagner tinha uma personalidade forte e um caráter bem duvidoso. Mas, era um gênio. Influenciou todas as gerações que se seguiram a ele. Seus seguidores como Mahler e Bruckner e seus opositores como Debussy e Stravinsky.
Ele fez a transição entre o bel canto da escola verista para o drama lírico e influenciou até mesmo o gênio de Busseto, Giuseppe Verdi, em suas últimas óperas, notadamente em Otelo.
Nossa presidente, Dilma Roussef é admiradora de Wagner e apaixonada pelo Tristão e Isolda, o ápice do romantismo. Eu prefiro o humor hermético de Os Mestres Cantores de Nuremberg.
Filarmônica de Israel: choro e abandono por conta de Wagner
Wagner morreu em 1883, cinco décadas antes que os nazistas chegassem ao poder na Alemanha. Não tem nada a ver com aquela imbecilidade coletiva patrocinada por Adolf Hitler. Era anti-semita, o que na Europa do século XIX não se constituía em uma distinção. O Beckmesser de Os Mestres Cantores é a prova disso. Mas, ninguém discriminou Shakespeare mesmo ele tendo escrito uma das obras mais anti-semitas que eu conheço, O Mercador de Veneza.
Ocorre que Hitler e seus animais nazistas valeram-se de Wagner e de Bayreuth para afirmar aquela bobajada de raça pura, supremacia teutônica, etc...E só quem viveu na Europa nos anos 30 e 40 pode dizer o quanto esta operação publicitária foi traumática.
Em 1981, o maestro indiano Zubin Mehta, então regente titular da Filarmônica de Israel provocou uma enorme polêmica ao reger o prelúdio do I Ato de Tristão e Isolda. Muita gente chorava na platéia e houve protestos marcantes.
O maestro argentino Daniel Baremboim, filho de judeus russos, regeu a orquestra da ópera estatal de Berlim, em Tel-Aviv, e tocou nada menos que o prelúdio do III Ato de As Valquírias. Foi uma barafunda, com muita gente abandonando a sala de concertos.
Desta vez, entretanto, parece que vai dar certo. A Orquestra de Câmara de Israel, regida por Roberto Paternostro, deve mesmo se apresentar em Bayreuth, como parte do programa do jubileu do bi-centenário do compositor húngaro Franz Liszt, sogro de Wagner, que morreu em 1886. Vai executar obras de Wagner, Liszt, Mahler e Mendelssohn. Dificilmente se apresentará no palco do teatro do festival.
Mas, isso não tem nenhuma importância. Como explicou o maestro Paternostro na reportagem da Graça: “A nova geração de músicos sabe diferenciar o significado musical da obra de Wagner”.
Tomara que, como disse o prefeito Michael Hobl, de Bayreuth, a apresentação da orquestra de Israel sirva para mostrar,65 anos depois, que a tolerância da arte e da cultura se sobrepõe a um dos mais estúpidos episódios da história do homem.



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