quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Aflitos de ontem, poderosos de hoje, ou vice-versa


Redação da Folha de S.Paulo: contadores de história

Quando minha filha Bianca estudava no fundamental sua professora perguntou a todos os alunos sobre a profissão dos pais.
- Meu pai é jornalista. Ele conta histórias.
Este episódio sempre me encheu de orgulho. Senti-me confortável com o papel de contador de histórias.
A moda do momento, entretanto, é satanizar imprensa e jornalistas. De preferência confundindo as coisas. Afinal, a imprensa é uma instituição representada pelos jornais, pelas tevês, pelas rádios e pelos portais de internet. Jornalistas são apenas operários da comunicação que abastecem estes instrumentos com conteúdo. Nada mais.
Jornalistas são pessoas que têm poucos compromissos. Na verdade, têm apenas um, com a notícia. Independentemente de ser boa ou ruim, de servir ou desservir a quem quer que seja. Por isso mesmo, são pessoas desagradáveis, que vivem perguntando sobre assuntos chatos e desconfortáveis. Interessam-se pela vida dos outros.
Bons jornalistas não são saudados com entusiasmo. Ao contrário, as pessoas não raro franzem o cenho quando trombam com um.
São pagos para apontar contradições e fustigar os poderosos.
Não possuem poder nenhum. Quem tem poder é a imprensa. São assalariados em sua maioria mal pagos. Não possuem grandes economias e não conseguem sequer fazer uma poupança.    
A maioria vive pouco. Um bom número deles consome álcool e drogas em excesso. São péssimos amantes. Vivem mais de um casamento. Têm filhos e mulheres espalhados por toda a parte. São infelizes, ególatras, convencidos e despertam toda a manhã com gosto de cabo de guarda-chuva na boca, absolutamente convencidos que, naquele dia, encontrarão a manchete que vai mudar o mundo.
Lidar com esta malta é muito difícil. É preciso ser um deles, como eu, para compreendê-los. Entender o que se passa em uma redação. O moedor de carne que é uma edição. O desapontamento de ver um texto triturado, mal editado, um título equivocado e distorcido daquilo que originalmente tinha sido pensado.
Há jornalistas que se julgam importantes e não são. Há jornalistas que não se julgam coisa nenhuma e são mesmo. Há aqueles que se sentem discriminados por conta do veículo em que trabalham. Outros por conta da geografia.
Bernstein e Woodward: o caso Watergate
Duvido que tenha havido algum jornalista no mundo que não sonhou em trabalhar no Washington Post e viver a aventura de Carl Bernstein e Bob Woodward. Ou que não tenha se imaginado na pele de Peter Arnett, na CNN, percorrendo as trincheiras de resistência do mundo.
Para quem não sabe, Bernstein tinha vocação para colunista social. Tinha horror à reportagem. Woodward até aquela manhã de sábado em que foi convocado para acompanhar o julgamento de uns cubanos malucos que invadiram na noite anterior a sede do Partido Democrata no edifício Watergate, estava com um pé na rua. Era considerado preguiçoso e impreciso. Arnett, quando foi para Bagdá em 1991, se julgava um fóssil de jornalista. Sonhava com a aposentadoria e em criar avestruzes na sua Austrália natal.
Ah sim! Jornalistas são depressivos. Mesmo aqueles rostos bonitos que a gente vê na televisão, e que não sabem distinguir o papel de estrelas do de contador de histórias, em algum momento tiram as suas máscaras e descobrem o verdadeiro rosto.
Arnett:criador de avestruz
Carlos Eduardo Lins e Silva, um colega que eu admiro muito, uma vez me repreendeu porque eu torcia pela Itália na Copa do Mundo dos Estados Unidos. Em algum lugar há um manual de conduta que proíbe os jornalistas de manifestar seus sentimentos. 
Em Buenos Aires uma vez, um colega de Veja recusou um convite para jantar comigo porque o mesmo manual, em sua versão Abril, proibia confraternização com colegas. Jantamos como dois idiotas, sozinhos, um em cada mesa, no mesmo restaurante. Nunca o perdoei por isso.
Jornalistas não têm índole boa ou má. São desprovidos de caráter. Vivem em função da notícia. Costumo brincar que os correspondentes estrangeiros em Jerusalém, há dois mil anos, teriam sintetizado assim os acontecimentos: “Judeus aclamam Barrabás e romanos crucificam herege”.
Tenho certeza que nenhum dos jornalistas tinha nada contra Jesus Nazareno. Mas, Caifás havia proclamado sua heresia e o governador Pôncio Pilatos, cuja entrevista mereceria um box, ainda tentara livrar o pobre. Um repórter mais bem informado faria sensacionalismo: “Mulher de Pilatos tentou convencer o marido a poupar o Nazareno”.
É verdade que às vezes este perfil de jornalista se transforma em uma caricatura. Billy Wilder, o célebre diretor austríaco que fez fama em Hollywood, mostrou uma famosa em seu filme “A Montanha dos Sete Abutres”. Nele, Kirk Douglas interpreta um jornalista que não sobrevive nas redações das grandes cidades e vai parar num jornalzinho do interior do estado do Novo México. Muito a contragosto ele é mandado para fazer a cobertura de um torneio de serpentes numa cidade próxima.
Douglas: Montanhas e abutres reais
No meio do caminho, ao parar em um posto de gasolina para abastecer o carro, descobre que havia alguma coisa errada. O faro do bom jornalista faria muito galgo morrer de inveja. Um índio estava soterrado em uma mina.
Isso não seria notícia nem no Novo México, ele então convenceu o prefeito e a família do índio que aquela fatalidade poderia representar a redenção do lugar. Ao invés de desobstruir a mina e salvar o mineiro, decidiram fazer um corte vertical na montanha, o que demoraria semanas.
Toda a imprensa americana acorreu ao local, rádio e televisão, até um parque de diversões foi construído no local. Ao final, o índio não sobreviveu. Mas, esta foi uma notícia sem suíte.
É um filme. Uma ficção. Uma caricatura. Mas, eu juro que, ao longo de quase 40 anos de profissão eu vi este índio morrer várias vezes.
Alguns jornalistas mais pretensiosos trocam prestígio por um up-grade e transformam-se em políticos. Churchill e Mussolini, numa esfera, Hélio Costa e Antônio Brito, em outra. Outros se transformam em escritores. Kipling, Hemingway, Orwell, Steinbeck, Reed, apenas para citar alguns. 
Tive o privilégio de trabalhar e ser formado por colegas que me ensinaram muito mais que as técnicas jornalísticas: Cláudio e Perseu Abramo, Mino Carta, Tão Gomes Pinto, Clóvis Rossi, Sílvio Lancelotti, Moacir Japiassu, Otávio Ribeiro, Hamilton Almeida Filho, entre outros. Aprendi com eles que o papel primeiro do jornalismo é incomodar os poderosos e confortar os aflitos. E não o contrário!
O problema é que os aflitos de ontem podem ser os poderosos de hoje, ou vice-versa, e aí os tratamentos mudam. Surge a neurose da conspiração, a confusão entre dono de jornal e empregado, entre notícia e editorial. Neste momento é preciso muita lucidez e muita auto-crítica, mas esse é um assunto para um novo post no futuro.     

5 comentários:

  1. Que alento ler uma coisa dessas no fim de um dia de uma semana chata. Alma lavada. Obrigada!

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  2. Todos nós començamos nossas vidas com necessidades de orientação. Mesmo uma vez que nos tornamos adultos,com a capacidade de raciocinar por nós mesmos; a maior parte de nós fica prostrada pelas pressões da sobrevivência cotidiana. Nuncio em seus escritos sempre nos inspira a expandir nosso estreito campo de visão. No lugar de tentar nos afuscar com seu brilhantismo; Nuncio reflete nossa própia luz de volta para nós; de maneira a que possamos nos ver de outra forma mais generosa.

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  3. muito bom!
    um sopro de lucidez nas trevas...

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  4. Chefe! Ótimo seu blog! Saudade de todos. Beijo, Heloisa

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  5. Bem interessante essa sua estereotipização meio tensa, irônica e verdadeira da figura do jornalista. Também acho que seja bem por aí; e se é bom ou ruim, não saberia dizer... (Fabiana - elaseetc.blogspot.com)

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