sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Un tal Lucas!

Julio Cortazar: ponte perfeita entre Buenos Aires e Paris
Certamente um dos escritores que mais marcaram a minha juventude foi o argentino Julio Cortázar. Li quase tudo o que ele escreveu e ainda tive o privilégio de entrevistá-lo para a revista Panorama, no início dos anos 80, em seu apartamento na calle Montevideo, em Buenos Aires.
Cortázar nasceu na Bélgica, de pais argentinos, e fez a ponte perfeita entre Buenos Aires e Paris. Tinha uma obsessão marcante: as aventuras pelos metrôs, que tanto podiam ser em uma cidade como em outra. Não sei dizer se foi o momento em que eu o conheci, lendo seus contos maravilhosos, mas ele sempre me reportava ao tango Buenos Aires Hora Zero, de Astor Piazzola.
Eu via Cortázar nas ruas escuras, nas vielas e nas grandes avenidas de Buenos Aires. Sua inquietação e a loucura dos seus personagens me davam uma incrível sensação de contemporaneidade. Dividíamos a paixão pela mesma atriz: Glenda Jackson, a quem ele dedicou um conto maravilhoso chamado “Queremos tanto a Glenda!”, e até pelo mesmo filme, “Mulheres Apaixonadas”, de Ken Russel.
Cortázar era completamente tarado por Maria Bethânia. Tinha todos os discos. E por Oswald de Andrade. Aliás, falava do modernismo brasileiro com uma desenvoltura impressionante. Conhecia até o palhaço Piolim.
Cortázar tinha pavor de congestionamentos claustrofóbicos. Um de seus contos mais famosos trata de um, nas cercanias de Paris, depois de um feriado prolongado, quando todas as rodovias ficaram literalmente paradas.

Glenda Jackson; musa em comum
 A paralisação levou ao convívio entre as pessoas que ocupavam os carros. Rolou até uma história de amor. E quando tudo parecia fazer reerguer o melhor dos mundos, o trânsito começou a andar e o sonho se desfez. As pessoas nunca mais se encontraram.
Mas, o conto que mais me entusiasma foi um dos últimos que ele escreveu. Está no livro “Un tal Lucas”. Portenho até a gema. Conta a história de um cidadão que ao final da tarde chega a seu apartamento, provavelmente no Barrio Norte. Uma criatura está a sua espera para dividir a sua solidão.
A ansiedade é tanta que ele nem se banha. Os dois partilham da intimidade com volúpia e se refestelam na cama ao final, contemplando o movimento dos faróis dos carros que contornavam Ayacucho com Juncal e se refletiam no teto do quarto. Fazia muito calor e ele estica os braços em busca de cigarros.
Encontra o maço de Jockey Club, mas não acha os fósforos. Levanta-se, remexe nas gavetas, vai até a cozinha. Não encontra um único palito de fósforos em toda a casa.
Sua companheira está deitada de bruços, dormindo. Ele a contempla por um instante, mas a seguir veste o roupão e desce para comprar uma caixa de fósforos no quiosque da esquina. Vinte metros da entrada do seu prédio. Talvez nem isso.
No pequeno percurso, entretanto, encontra um amigo, que o saúda efusivamente.
- É o aniversário do meu sogro, venha comigo.
- Como assim, não está vendo? Estou de roupão.
- Mas, o meu sogro é o farmacêutico de frente, ele te adora, e ficaria muito feliz em te ver.
Contrariado, nosso personagem concorda em pelo menos cumprimentar o velho farmacêutico que, com efeito, fica muito feliz em vê-lo. A família toda reunida também o saúda, quase sem perceber que, afinal, ele está vestido apenas com o roupão.
Buenos Aires Hora Zero; cenário de Cortazar
Em meio à alegria e aos cumprimentos, uma senhora nervosa entra na farmácia e pede um remédio próprio para acelerar os batimentos cardíacos. Zeloso, o farmacêutico coloca a escada na estante de mogno, antiga e lustrosa, para alcançar o medicamento.
E quando está lá no alto, com a caixa azul na mão, um neto peralta esbarra levemente na escada, o suficiente para derrubar o farmacêutico no chão.
Verdadeira comoção. Parece que uma perna se quebrou. Alguém já chama uma ambulância, que espalhafatosa chega ao local.
Nosso personagem ajuda a colocar a maca na viatura e não se dá conta que a porta se fecha atrás dele.
Com a sirene a toda, a ambulância atravessa toda a cidade, enquanto nosso personagem trata de acalmar o velho farmacêutico que gemia de dor.
A chegada ao hospital é traumática. Os enfermeiros se atrapalham ao pegar a maca. E ele ajuda mais uma vez, até acomodá-lo em um leito no Pronto Socorro. Logo chega a família, aquela confusão toda.
Nosso personagem tenta sair do hospital e estabelece-se nova confusão. Como assim, vestido apenas de roupão, ele parecia um paciente tentando fugir. Uma filha do farmacêutico consegue explicar ao segurança do hospital que ele não tinha nada a ver com isso.
E o nosso amigo se vê só. Do outro lado da cidade. Vestindo apenas um roupão.
Resignado, foi para o ponto do ônibus. Um abrigo com um banco de cimento. Sentou-se numa das pontas. Na outra uma senhora de uns 60 anos, ainda vigorosa na maquiagem e no arranjo dos cabelos pintados, olhava de forma estranha para ele. Levantou-se abriu a bolsa e disparou:
- O senhor tem fósforos?
Desculpe Julio, não tenho o teu talento. Mas, que é uma grande história, é.

Um comentário:

  1. otima historia, Nunzio. Cortazar eh genio total.
    em Prosa de Observatorio, tem umas fotos maravilhosas. em La Vuelta al Dia en Ochenta Mundos, edita a melhor collage que ja vi, com a mesma "liviandad que empleara Phileas Fogg en dar la vuelta al planeta"... enfim, sou fanatico por JC.
    mas não suspeitava da admiração de Jules, pelo meu heroi Oswald de Andrade. Ganhei o dia com essa informação.
    agora, a historia da Maria Bethania me surpreendeu, sempre achei que fosse a Gal Costa, a musa cortazariana.

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