quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Uma inquietação que transcende a vida





Alan Kardec: o codificador do espiritismo


Uma das obras mais trepidantes publicadas no século XIX, pelo menos no campo da religião, foi o Livro dos Espíritos, assinado por Alan Kardec, na verdade Hippolyte Leon Denizard Rivaill. Em 1857 os púlpitos da Europa ficaram ouriçados pelas revelações deste pedagogo francês.
Com uma didática impressionante, o livro é todo ele composto de perguntas e respostas, Kardec introduz o conceito de que a existência não é absoluta, mas fruto de uma sequência de existências, que obedeceriam a uma evolução espiritual, ditada por um livre arbítrio dentro da dicotomia bem ou mal.
O que seria o bem? Nada de revolucionário. Os mesmos conceitos seculares do cristianismo: a fé em Deus, o amor ao próximo, a caridade, etc... O mal?
Também nada de novo: o egoísmo, o materialismo, etc...
Na verdade, Kardec introduziu uma crença, a reencarnação sucessiva do espírito humano. Coisa que os judeus já defendiam desde o Sinai. Afinal para fazer  parte do povo escolhido, até hoje, parte-se do principio de que se estava no deserto quando Moisés desceu da montanha com as tábuas sagradas.
Kardec não defendeu um povo. Mas, lançou mão da teoria karmática, que os espíritas chamam de ação-reação. Ou seja, o ser humano pode se valer do livre-arbítrio para decidir uma ação ou a própria existência, mas se tomar o caminho errado vai expiar sua culpa em vidas futuras.
Isso já seria suficiente para fazer tremer a cúpula de São Pedro, em Roma. Ainda mais porque suas posses, suas terras e seu poder político estavam ameaçados por movimentos operários, regimes republicanos e outras idéias que se alheavam ao Dominus Obiscum!
Para piorar, os judeus encontraram na revolução industrial uma forma mais limpa e eficiente de multiplicar seus capitais e financiar o desenvolvimento e o progresso.
Kardec foi ainda mais fundo. Defendeu que existiria um outro mundo, do qual este seria uma cópia imperfeita, habitado por espíritos desencarnados que poderiam se comunicar, desde que sua comunicação fosse decodificada. O próprio Livro dos Espíritos teria sido ditado por espíritos.
É importante esclarecer que Kardec não confrontou a fé cristã. Não atentou contra a moral da Santa Madre, não criou santos, ídolos ou rituais. Não se investiu do mantra dos profetas, nem parecia preocupado em convencer as grandes massas. Aliás, o sucesso de sua doutrina se dá junto as classes mais abastadas. E as razões disso são óbvias: ele não pregava um reino de salvação, não prometia a redenção da alma ou o remédio imediato para as dores do povo. Por outro lado, ao lançar mão da teoria karmática, justificava o sofrimento dos trabalhadores e das classes mais pobres por uma questão religiosa e não social. Ao defender a caridade cristã, deixava tudo muito confortável: bastava dar mais ou dar menos esmolas, cuidar das feridas dos escravos, quem sabe uma hora de descanso nas caldeiras, e o carnet do paraíso estava carimbado o que garantiria uma existência confortável na próxima reencarnação.   
Kardec e o kardecismo fizeram muito sucesso na Europa no final do século XIX e no início do século XX, por permitir que as pessoas se consolassem com a morte de entes queridos a partir da comunicação post-mortem. Sobre o assunto, um importante cientista inglês, sir Oliver Lodge, escreveu um livro emocionante chamado Raymond. O nome de seu filho querido que morrera num acidente náutico.   
O processo de comunicação clássico se dá por dois processos muito simples: o primeiro, um copo com água se movimenta entre as letras de um alfabeto espalhado por uma mesa e forma as palavras. No segundo, um tamborete, um banquinho de três pernas, a partir de um código muito singelo (uma batida para “a”, duas para  “b” e assim por diante). Mas, o processo mais polêmico envolve o aparelho humano, ou seja, pessoas com percepção extra-sensorial, os médiuns, decodificariam estas mensagens ou simplesmente contando o que vem, ou escrevendo mensagens ditadas, a chamada psicografia.
Chico Xavier
Curiosamente, a teoria de Kardec chegou ao Brasil ainda no século XIX, trazida por militares, pela maçonaria e por médicos. Difundiu-se de uma maneira impressionante, mesmo sendo uma doutrina toda ela escrita em livros, em um país com uma população majoritariamente analfabeta. Merece respeito o trabalho desenvolvido pelo médico cearense Bezerra de Menezes, um dos pioneiros do kardecismo no Brasil. Da mesma forma, merece um estudo mais aprofundado o trabalho do médium Francisco Cândido Xavier.
Conheci Xavier em 1995, em Uberaba, quando preparava uma reportagem. Ele me pareceu cansado e doente. Mas, me recebeu com uma simpatia impressionante. Perguntei-lhe como ele se sentia sendo o mais bem sucedido escritor brasileiro. E questionei porque ele doava os seus direitos autorais a Federação Espírita Brasileira.  
Para quem não sabe, o livro Nosso Lar, psicografado por Xavier, que serviu de base para o filme homônimo em cartaz, ditado pelo espírito do médico carioca André Luiz, havia vendido até aquele ano nada menos do que 25 milhões de cópias.
Xavier deu um sorriso, colocou a sua mão no meu rosto, e me respondeu:
- Mas, o conteúdo não é meu. Não fui eu que escrevi. Eu apenas copiei.
Passei uma tarde inteira com Xavier no quartinho onde ele morava, no fundo da casa do sobrinho. Conversamos sobre o processo de psicografia e outro autor, que ele copiava, o espírito Emmanuel. Cobrei dele uma justificativa para esta ausência do mundo dos espíritos na luta de classe. Ele me respondeu:
- Não confunda o espiritismo com os espíritas. Kardec não avançou nesta questão, mas também não proibiu ninguém de fazê-lo.
Voltei para Brasília certo de que havia entrevistado o 13º apóstolo de Cristo, ou na melhor das hipóteses um santo vivo.
Cena de Nosso Lar: uma história muito bem contada

No feriado passado, fui com minha mulher Rejane, assistir ao filme Nosso Lar. A despeito de uma direção de arte horrível e figurinos pavorosos, trata-se de uma história muito bem contada. Diria mesmo emocionante. É impressionantemente fiel ao livro. André Luiz quando escreveu usou tintas pesadas para descrever o umbral, uma espécie de purgatório, onde se expiam os pecados. Fez de forma bastante dicotômica. Do mesmo jeito que mostra a colônia de espíritos de uma maneira celestial-modernista bastante curiosa.
Sai com a alma lavada e confortada. Mas, minhas críticas continuam. Os espíritos expiam os pecados relacionados com suas existências: o alcoolismo, o sexismo, o suicídio, o egoísmo, etc... Mas, ninguém expia a exploração do trabalho do próximo, a acumulação descabida de riquezas, a falta de compromisso social ou a abstenção do papel de mudar a vida do próximo. Isso não é pecado?
Uma das coisas que aprendi sobre o espiritismo, da boca do maior espírita que eu conheci, um tio emprestado chamado Monir e apelidado Kiko, é que criticar a doutrina de Kardec não é proibido, nem vai me condenar ao inferno. Não existe hierarquia na doutrina, de tal forma que um simples funcionário dos Correios, sem nenhuma formação específica, pode ser o maior médium que a mundo dos encarnados conheceu. E para mim, foi e é suficiente.      

2 comentários:

  1. O filme é bom mesmo? Fiquei apavorada com o trailer. Pensei ser obra do Macedo, pra ganhar fiéis na Universal!

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  2. Pra falar a verdade a questão do que é considerado pecado, em qualquer religião, me intriga muito. Acho que me aliviaria se fôssemos "julgados" por "leis universais" e pessoais de forma concomitante, baseadas não somente nas atitudes (tipificadas em boas e más), mas nos sentimentos mais verdadeiros. Algo impraticável neste mundo que a gente vive. Quem sabe no próximo...

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