quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O carneiro palestino de um chef judeu

Isaac com Aécio: saudades do La Torreta

Um de meus amigos mais queridos é o chef Isaac Corcias, piloto e proprietário do finado La Torreta, um dos melhores restaurantes de Brasília, não só pela competência de sua cozinha, mas pelo acolhimento, simpatia e, sobretudo, pelas histórias que ele contava, sempre sentado à minha mesa. Esta é uma de suas melhores.
A fama do chef Isaac Corcias, um judeu sefaradi do Marrocos, formado e treinado em Barcelona, começou a se difundir pelo mundo graças a um carneiro que ele teimou em assar no bar da piscina do hotel Sheraton em Tel Aviv. O perfume da iguaria crepitando nas brasas aguçava o apetite e provocava uma sede tremenda nos freqüentadores.
O problema é que Isaac tinha um ajudante que era palestino e que sempre terminava o dia com uma provocação. “Seu carneiro é bom, mas o do meu pai é melhor”.
No começo, Isaac não deu muita importância à provocação. Mas, o menino insistia, insistia e insistia. Tanto que a frase começou a martelar o inconsciente do chef.
- Melhor por quê? O quê ele faz de diferente? O tempero? – desabafou numa tarde.
Sem se intimidar o menino retrucou que não contaria o segredo do pai, mas que se ele se dispusesse a dormir uma noite em um acampamento palestino, pela manhã poderia saborear a iguaria do pai e tirar suas conclusões.
Isaac teve medo. Mas, afinal a curiosidade venceu os temores. Numa noite os dois saíram juntos do hotel, tomaram o ônibus e foram para a chamada área proibida. No percurso, lhe veio à cabeça a contradição: depois de sofrer nos guetos da Europa durante a Segunda Guerra, seus compatriotas agora confinavam os palestinos em acampamentos precários, segregavam o convívio, negavam-lhe direitos.
Chegaram muito tarde. Tão tarde que Isaac foi encaminhado logo para um quarto preparado especialmente para ele. Com a cabeça no travesseiro, as contradições embargaram o seu sono. Foi com muita dificuldade que conseguiu dormir.
Despertou no meio da madrugada, ao som de facas sendo amoladas na pedra. Voltou a dormir e a sonhar. Isaac era o nome do primogênito de Abraão. E não foi pouco o sofrimento e a tortura que ele passara. Deus, Ele mesmo, havia pedido ao já velho patriarca que entregasse o menino em sacrifício.
E Abraão não só cogitou como chegou a preparar o filho para o sacrifício. No momento do golpe decisivo, Deus, Ele mesmo, admitiu que estava testando a fé do velho.
Isaac acordou suando, ouvindo vozes. Quando desceu as escadas, foi saudado efusivamente pela família do seu ajudante. O carneiro crepitava nas brasas, as facas estavam todas afiadíssimas.
O carneiro estava tão bom que Isaac aposentou sua receita e desde então passou a praticar a versão palestina, que o pai de seu ajudante transmitiu em absoluta confiança. Já testei esta iguaria. É espetacular. Ideal para o Natal. Afinal, a habilidade hebraica, a receita árabe, em uma efeméride cristã. Existe forma melhor?
Que bom que você está de volta, Isaac. Que saudades das suas histórias e da sua sabedoria!

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